sábado, 4 de fevereiro de 2012

Capítulo 9



QUANDO UM HOMEM SE PÕE A CAMINHAR …

René entrou em casa silenciosamente e encontrou-a envolta em quietude.
Cacilda ainda não acordara.
Dirigiu-se ao quarto envolto em penumbra e percebeu nos movimentos de Cacilda sob os lençóis o ritual do despertar. Deteve-se junto à porta, observando expectante, até que Cacilda, dando pela sua presença, o desafiou: Não queres ajudar-me a acordar?! No timbre da voz – uma falsa rouquidão, como um cicio, impregnada de sensualidade - identificou o eterno rumor de vulcão que recusa extinguir-se. Mesmo quando adormecido, bastava uma leve viração do ar para que sôfrego despertasse para a combustão intensa. Aqui chegados já René sabia não haver forma de fugir ou recuar de modo que, desembaraçando-se rapidamente da roupa, mergulhou completamente nu entre os lençóis preparado para o desvario.
Passado algum tempo (demasiado no parecer de René e apenas razoável para a insaciável e viciada Cacilda), enquanto ele ainda se recompunha resfolegando estirado na cama, já ela se dirigia para a casa de banho entoando uma cantiga então muito em voga “Não tenho nada mas tenho tenho tudo …”

Ouviu a porta do polibã a correr e a água a cair e depois, cansado, adormeceu.

Quando despertou não tinha a mínima noção da duração do sono. Dormira profundamente, portanto.

Sentiu um enorme bem-estar na calma semiobscuridade do quarto e apeteceu-lhe ficar ali, deitado, completamente quieto e de olhos abertos, analisando e organizando os pensamentos.

A relação com Cacilda esgotava-se rapidamente.

Sabia que o impulso que o empurrou para os braços dela fora desencadeado pela magia de um momento envolto por uma música que, renunciando, ressoava a dimensão dessa mesma renúncia, fragilizando e tornando carente o ser latejante que navegava nas águas subterrâneas do seu eu profundo. A vulnerabilidade assim exposta, convergindo com a curiosidade animada por um sopro de aventura com tendência epopeica, partiu à procura da rolha que tapasse o buraco criado na alma e o colo de Cacilda assumiu-se como a foz natural e próxima para que o torvelinho que lhe nascera desaguasse. Mas, agora, passara a magia do feitiço e sobrava o cansaço e o sabor azedo do arroto na difícil digestão do apetite saciado.

René já sentira alguma resistência do seu músculo prazeroso em retesar-se no prelúdio da cópula e sabia agora que essa tendência se tornava mais acentuada e incontornável na sucessão dos dias e dos desvarios orgiásticos. Passada a emoção galopante das primeiras paradas, que restava? Havia fogueira ateada por alguma convergência de ideias, conceitos estéticos, espírito de missão? Não! Antes pelo contrário. Já o hálito o afastava, o seu cheiro peculiar de fêmea excitada repugnava e, por deriva, a libido esmorecia irreversivelmente. Dobrado o cabo dos tesões compulsivos e dolorosamente tensos que desaguavam em marés torrenciais, concluía não ser aquele o seu porto. Era hora de partir. Sabia-o agora sem margem para quaisquer dúvidas e, como tal, era hora de começar a preparar a saída de cena, daquela cena. Propósitos antigos que lenta e racionalmente sedimentara em si retornavam em vagas volumosas que impeliam o seu barco-alma para outras esferas e latitudes. O seu destino e desígnio era retornar à sua terra: ÁFRICA! E aí redesenhar o mapa da trajectória do seu porvir. Duas coisas sabia querer respeitar e ver satisfeitas:

– Não abandonar Cacilda como um criminoso, fugindo;
– Deslindar o mistério do Palacete da Fonte da Prata.

Na quietude do leito, de olhos bem abertos, René equacionou o que lhe lavrava no peito e inquietava, e decidiu o que reclamava decisão e isso, apaziguou-o. Posto isto, levantou-se de um salto, deliciou-se com abundante banho, vestiu uma roupa confortável e desportiva, tomou o pequeno-almoço à base de cereais e preparou-se para sair. Antes disso, e no cumprimento da estratégia delineada, escreveu num post-it que colou na porta do frigorífico:

“PERDONAME”
(título da canção que escutavam quando “espetou” apaixonado beijo em Cacilda)

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Na rua dirigiu-se ao café Ensaio, pediu uma bica e copo de água ao balcão e sentou-se na esplanada saboreando o sol que brilhava. Apercebeu-se que nas mesas ao lado as pessoas cochichavam e algumas sorriam. Decerto comentavam os reboliços de Cacilda mas René alheou-se das coscuvilhices.

Acendeu um cigarro enquanto saboreava o café e recapitulou mentalmente as conclusões/decisões a que chegara:

Terminar a relação com Cacilda;
Investigar o mistério do Palacete da Fonte da Prata;
Retornar a África e retomar os projectos que longamente amadurecera e que ultimamente protelara.

Relativamente ao Palacete da Fonte da Prata começou a passar em revista as impressões deixadas pela sua última e excitante expedição.

Havia uma linguagem subliminar místico-iniciática, inserta nos inúmeros pormenores arquitectónicos do palácio, que lhe escapava. Qualquer coisa que teria a ver com os templários, o V Império, o pulsar mítico do “destino” português, … Havia no edifício uma história que não estava a conseguir decifrar. Tudo era excitante e enigmático.

Numa interpretação necessariamente metafórica do que visualmente registara, interpretava especulativamente que descendo, descendo-se ao âmago da natureza-terra se encontrava água, húmus, fonte de toda a fecundidade e abundância. Dobrando-nos progressivamente até sermos forçados a rastejar (até ao “sal” da terra) para poder progredir, chega-se ao centro da luz. A mesa de pedra redonda (o planeta Terra) e os quatro bancos (os quatro pontos cardeais, todas as latitudes)

 - Vá-se lá saber porquê, a memória tirou do alforge e apresentou-lhe, um poema de Antero de Quental reapresentado por José Mário Branco, músico e compositor português muito do seu apreço –

TENTANDA VIA

Antero de Quental

III

          Sim! Que é preciso caminhar avante!
          Andar! passar por cima dos soluços!
          Como quem numa mina vai de bruços,
          Olhar apenas uma luz distante!


          É preciso passar sobre ruínas,
          Como quem vai pisando um chão de flores!
          Ouvir as maldições, ais e clamores
          Como quem ouve músicas divinas!


          Beber, em taça túrbida, o veneno,
          Sem contrair o lábio palpitante!
          Atravessar os círculos de Dante,
          E trazer desse inferno o olhar sereno!

          Ter um manto de casta luz de crenças,
          Para cobrir as trevas da miséria!
          Ter a vara, o condão da fada aérea,
          Que em ouro torne estas areias densas!


          E, quando, sem temor e sem saudade,
          Puderdes, dentre o pó dessa ruína,
          Erguer o olhar à cúpula divina,
          Heis-de então ver a nova-claridade!


          Heis-de então ver, ao descerrar do escuro,
          Bem como o cumprimento de um agouro,
          Abrir-se, como grandes portas de ouro,
          As imensas auroras do Futuro!

Então poderia ser:
Em todas as latitudes, em todos os cantos da Terra, devia o homem descer ao íntimo da natureza, ao ser profundo, ao povo, ao pobre para poder encontrar a abundância e iluminação. Devia depois reunir-se e dialogar, reflectir, com a gente de toda a parte e ouvir, seguir e agir de acordo com o que a mensagem indicava.

Eram emanações imbuídas de grande inspiração cristã. Retornar ao interior, ao mais baixo da cadeia. Retornar aos pobres pois será deles o reino dos céus (na terra).

Aqui chegado, René refreou o pensamento. Conhecia-se sobremaneira e sabia que, entusiasmando-se, tenderia e transformar uma teoria/interpretação aleatória e especulativa em conclusão sólida e definitiva e isso seria desajustado e alienatório.

Achava ele que o ouro e os diamantes pertenciam a uma outra história, era uma outra situação que se não ligava com os mistérios arquitectónicos do palacete.

Enquanto o pensamento discorria a tarde avançava de modo que, quando se deu conta, já o dia entrava na fase do lusco-fusco. Sentiu-se atraído pelo palacete e, sem pensar duas vezes, cedeu à atracção, levantou-se com a decisão de ir até lá.

Quando se começou a abeirar do edifício em ruínas, apercebeu-se do ruído de uma camioneta manobrando e do ruído de vozes algumas com sotaque estrangeiro. Sem saber bem porquê tornou-se cauteloso e aproximou-se, tentando esconder-se, para perceber o que se passava. De repente ouviu o ruído de tiros e uma saraivada de balas levantou lascas da parede a que caminhava rente. René, assustado e aflito, procurou rapidamente fugir dali , sprintando no sentindo oposto ao que o trouxera.

René correu, correu, sem olhar para trás e só muito depois, ofegante, suspendeu a corrida e retrocedeu o olhar. Nada, ninguém. Bolas, pelos vistos estava safo… Regressou a casa e tratou de passar à forma escrita – tipo relatório – não só as suas reflexões mas também os últimos acontecimentos por que passara e que sugeriam uma operação de alguma seita mafiosa.

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Enquanto relatava, escrevendo, o que reflectira e experienciara uma outra decisão se impôs com inevitabilidade e urgência: Tinha de partir imediatamente! O seu tempo ali acabara.

Terminou o relatório, que colocou num envelope endereçado à Associação de Arqueologia de Alhos Vedros, e dirigiu-se ao quarto onde começou a fazer as malas.

Avançando agora rapidamente:

Esperou a chegada de Cacilda e, sem saber bem por onde começar, lá começou a explicar-lhe que a relação deles não tinha futuro, que era hora de partir e que África lhe acenava como num apelo.

Cacilda desmoronou-se e não queria aceitar aquele desfecho. Confessava-se surpreendida e desiludida e faria o que fosse preciso para o reter. Chorou, fungou, gritou mas …, subitamente, acalmou-se. Sentira que a decisão de René era definitiva e irreversível e tratou de tentar salvar o que podia ser salvo daquela relação.

René pegou nas malas e abalou porta fora. No dia seguinte, pela manhã bem cedo, tomaria o avião que o levaria à Bélgica, onde recolheria a bagagem para uma estadia bem prolongada num outro lugar e continente. África era o seu destino.

03.fevereiro.2012