sábado, 4 de fevereiro de 2012

Capítulo 9



QUANDO UM HOMEM SE PÕE A CAMINHAR …

René entrou em casa silenciosamente e encontrou-a envolta em quietude.
Cacilda ainda não acordara.
Dirigiu-se ao quarto envolto em penumbra e percebeu nos movimentos de Cacilda sob os lençóis o ritual do despertar. Deteve-se junto à porta, observando expectante, até que Cacilda, dando pela sua presença, o desafiou: Não queres ajudar-me a acordar?! No timbre da voz – uma falsa rouquidão, como um cicio, impregnada de sensualidade - identificou o eterno rumor de vulcão que recusa extinguir-se. Mesmo quando adormecido, bastava uma leve viração do ar para que sôfrego despertasse para a combustão intensa. Aqui chegados já René sabia não haver forma de fugir ou recuar de modo que, desembaraçando-se rapidamente da roupa, mergulhou completamente nu entre os lençóis preparado para o desvario.
Passado algum tempo (demasiado no parecer de René e apenas razoável para a insaciável e viciada Cacilda), enquanto ele ainda se recompunha resfolegando estirado na cama, já ela se dirigia para a casa de banho entoando uma cantiga então muito em voga “Não tenho nada mas tenho tenho tudo …”

Ouviu a porta do polibã a correr e a água a cair e depois, cansado, adormeceu.

Quando despertou não tinha a mínima noção da duração do sono. Dormira profundamente, portanto.

Sentiu um enorme bem-estar na calma semiobscuridade do quarto e apeteceu-lhe ficar ali, deitado, completamente quieto e de olhos abertos, analisando e organizando os pensamentos.

A relação com Cacilda esgotava-se rapidamente.

Sabia que o impulso que o empurrou para os braços dela fora desencadeado pela magia de um momento envolto por uma música que, renunciando, ressoava a dimensão dessa mesma renúncia, fragilizando e tornando carente o ser latejante que navegava nas águas subterrâneas do seu eu profundo. A vulnerabilidade assim exposta, convergindo com a curiosidade animada por um sopro de aventura com tendência epopeica, partiu à procura da rolha que tapasse o buraco criado na alma e o colo de Cacilda assumiu-se como a foz natural e próxima para que o torvelinho que lhe nascera desaguasse. Mas, agora, passara a magia do feitiço e sobrava o cansaço e o sabor azedo do arroto na difícil digestão do apetite saciado.

René já sentira alguma resistência do seu músculo prazeroso em retesar-se no prelúdio da cópula e sabia agora que essa tendência se tornava mais acentuada e incontornável na sucessão dos dias e dos desvarios orgiásticos. Passada a emoção galopante das primeiras paradas, que restava? Havia fogueira ateada por alguma convergência de ideias, conceitos estéticos, espírito de missão? Não! Antes pelo contrário. Já o hálito o afastava, o seu cheiro peculiar de fêmea excitada repugnava e, por deriva, a libido esmorecia irreversivelmente. Dobrado o cabo dos tesões compulsivos e dolorosamente tensos que desaguavam em marés torrenciais, concluía não ser aquele o seu porto. Era hora de partir. Sabia-o agora sem margem para quaisquer dúvidas e, como tal, era hora de começar a preparar a saída de cena, daquela cena. Propósitos antigos que lenta e racionalmente sedimentara em si retornavam em vagas volumosas que impeliam o seu barco-alma para outras esferas e latitudes. O seu destino e desígnio era retornar à sua terra: ÁFRICA! E aí redesenhar o mapa da trajectória do seu porvir. Duas coisas sabia querer respeitar e ver satisfeitas:

– Não abandonar Cacilda como um criminoso, fugindo;
– Deslindar o mistério do Palacete da Fonte da Prata.

Na quietude do leito, de olhos bem abertos, René equacionou o que lhe lavrava no peito e inquietava, e decidiu o que reclamava decisão e isso, apaziguou-o. Posto isto, levantou-se de um salto, deliciou-se com abundante banho, vestiu uma roupa confortável e desportiva, tomou o pequeno-almoço à base de cereais e preparou-se para sair. Antes disso, e no cumprimento da estratégia delineada, escreveu num post-it que colou na porta do frigorífico:

“PERDONAME”
(título da canção que escutavam quando “espetou” apaixonado beijo em Cacilda)

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Na rua dirigiu-se ao café Ensaio, pediu uma bica e copo de água ao balcão e sentou-se na esplanada saboreando o sol que brilhava. Apercebeu-se que nas mesas ao lado as pessoas cochichavam e algumas sorriam. Decerto comentavam os reboliços de Cacilda mas René alheou-se das coscuvilhices.

Acendeu um cigarro enquanto saboreava o café e recapitulou mentalmente as conclusões/decisões a que chegara:

Terminar a relação com Cacilda;
Investigar o mistério do Palacete da Fonte da Prata;
Retornar a África e retomar os projectos que longamente amadurecera e que ultimamente protelara.

Relativamente ao Palacete da Fonte da Prata começou a passar em revista as impressões deixadas pela sua última e excitante expedição.

Havia uma linguagem subliminar místico-iniciática, inserta nos inúmeros pormenores arquitectónicos do palácio, que lhe escapava. Qualquer coisa que teria a ver com os templários, o V Império, o pulsar mítico do “destino” português, … Havia no edifício uma história que não estava a conseguir decifrar. Tudo era excitante e enigmático.

Numa interpretação necessariamente metafórica do que visualmente registara, interpretava especulativamente que descendo, descendo-se ao âmago da natureza-terra se encontrava água, húmus, fonte de toda a fecundidade e abundância. Dobrando-nos progressivamente até sermos forçados a rastejar (até ao “sal” da terra) para poder progredir, chega-se ao centro da luz. A mesa de pedra redonda (o planeta Terra) e os quatro bancos (os quatro pontos cardeais, todas as latitudes)

 - Vá-se lá saber porquê, a memória tirou do alforge e apresentou-lhe, um poema de Antero de Quental reapresentado por José Mário Branco, músico e compositor português muito do seu apreço –

TENTANDA VIA

Antero de Quental

III

          Sim! Que é preciso caminhar avante!
          Andar! passar por cima dos soluços!
          Como quem numa mina vai de bruços,
          Olhar apenas uma luz distante!


          É preciso passar sobre ruínas,
          Como quem vai pisando um chão de flores!
          Ouvir as maldições, ais e clamores
          Como quem ouve músicas divinas!


          Beber, em taça túrbida, o veneno,
          Sem contrair o lábio palpitante!
          Atravessar os círculos de Dante,
          E trazer desse inferno o olhar sereno!

          Ter um manto de casta luz de crenças,
          Para cobrir as trevas da miséria!
          Ter a vara, o condão da fada aérea,
          Que em ouro torne estas areias densas!


          E, quando, sem temor e sem saudade,
          Puderdes, dentre o pó dessa ruína,
          Erguer o olhar à cúpula divina,
          Heis-de então ver a nova-claridade!


          Heis-de então ver, ao descerrar do escuro,
          Bem como o cumprimento de um agouro,
          Abrir-se, como grandes portas de ouro,
          As imensas auroras do Futuro!

Então poderia ser:
Em todas as latitudes, em todos os cantos da Terra, devia o homem descer ao íntimo da natureza, ao ser profundo, ao povo, ao pobre para poder encontrar a abundância e iluminação. Devia depois reunir-se e dialogar, reflectir, com a gente de toda a parte e ouvir, seguir e agir de acordo com o que a mensagem indicava.

Eram emanações imbuídas de grande inspiração cristã. Retornar ao interior, ao mais baixo da cadeia. Retornar aos pobres pois será deles o reino dos céus (na terra).

Aqui chegado, René refreou o pensamento. Conhecia-se sobremaneira e sabia que, entusiasmando-se, tenderia e transformar uma teoria/interpretação aleatória e especulativa em conclusão sólida e definitiva e isso seria desajustado e alienatório.

Achava ele que o ouro e os diamantes pertenciam a uma outra história, era uma outra situação que se não ligava com os mistérios arquitectónicos do palacete.

Enquanto o pensamento discorria a tarde avançava de modo que, quando se deu conta, já o dia entrava na fase do lusco-fusco. Sentiu-se atraído pelo palacete e, sem pensar duas vezes, cedeu à atracção, levantou-se com a decisão de ir até lá.

Quando se começou a abeirar do edifício em ruínas, apercebeu-se do ruído de uma camioneta manobrando e do ruído de vozes algumas com sotaque estrangeiro. Sem saber bem porquê tornou-se cauteloso e aproximou-se, tentando esconder-se, para perceber o que se passava. De repente ouviu o ruído de tiros e uma saraivada de balas levantou lascas da parede a que caminhava rente. René, assustado e aflito, procurou rapidamente fugir dali , sprintando no sentindo oposto ao que o trouxera.

René correu, correu, sem olhar para trás e só muito depois, ofegante, suspendeu a corrida e retrocedeu o olhar. Nada, ninguém. Bolas, pelos vistos estava safo… Regressou a casa e tratou de passar à forma escrita – tipo relatório – não só as suas reflexões mas também os últimos acontecimentos por que passara e que sugeriam uma operação de alguma seita mafiosa.

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Enquanto relatava, escrevendo, o que reflectira e experienciara uma outra decisão se impôs com inevitabilidade e urgência: Tinha de partir imediatamente! O seu tempo ali acabara.

Terminou o relatório, que colocou num envelope endereçado à Associação de Arqueologia de Alhos Vedros, e dirigiu-se ao quarto onde começou a fazer as malas.

Avançando agora rapidamente:

Esperou a chegada de Cacilda e, sem saber bem por onde começar, lá começou a explicar-lhe que a relação deles não tinha futuro, que era hora de partir e que África lhe acenava como num apelo.

Cacilda desmoronou-se e não queria aceitar aquele desfecho. Confessava-se surpreendida e desiludida e faria o que fosse preciso para o reter. Chorou, fungou, gritou mas …, subitamente, acalmou-se. Sentira que a decisão de René era definitiva e irreversível e tratou de tentar salvar o que podia ser salvo daquela relação.

René pegou nas malas e abalou porta fora. No dia seguinte, pela manhã bem cedo, tomaria o avião que o levaria à Bélgica, onde recolheria a bagagem para uma estadia bem prolongada num outro lugar e continente. África era o seu destino.

03.fevereiro.2012

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Capítulo 8

O autor não adopta o novo Acordo Ortográfico

René

René calculava que após o seu casamento, com o passar dos dias, o entusiasmo e apetite sexual da sua insaciável mulher se fosse desvanecendo. Como se enganava! Ela conseguia aumentar sempre o nível das exigências, de tal maneira, que ele, campeão em muitas actividades, se começava a convencer que, pela primeira vez na sua vida, teria de desistir.

O pior era que Cacilda não se limitava a gozar os momentos de prazer carnal que o corpo do seu atlético e bem fornecido marido lhe proporcionava, mas fazia questão de os reproduzir em gemidos, gritinhos, berros e urros, conforme a progressão dos preliminares e do finalmente. De tal maneira, que René estava a ficar com a séria convicção que a frequência da esplanada do café Ensaio começava a registar um aumento considerável de clientes a partir das nove horas da noite, para ouvirem um espectáculo em que a imaginação tinha um papel preponderante porque, felizmente, as paredes diz-se que têm ouvidos, mas que se saiba, não têm olhos. Os mais incrédulos com as perfomances imaginadas diziam que os sons saiam de colunas de alta potência como, por exemplo, as implantadas em automóveis que fazem estremecer as estradas e quem sabe se um dia não virá a descobrir-se que derrubam pontes, como aquela de Entre-os-Rios.

Enganou-se, outra vez, nessa sua suposição! Para Cacilda, tudo era um bom pretexto para fazer amor, para experimentar uma nova posição, uma nova maneira de introduzir os instrumentos topo de gama do seu marido nos orifícios de que dispunha. Em alguns casos, mais do que meter o Rossio na Betesga, era fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha sem a ajuda dos óleos indicados para esses casos difíceis, o que não quer significar que sejam santos óleos.

No pouco tempo que tinha para pensar com a cabeça certa, o bom do René tinha chegado à conclusão que havia qualquer coisa de estranho nos relatos que lhe faziam dos acontecimentos na Quinta da Fonte da Prata. Desde logo, com a morte de Ralho (no final da vida sua já não de davam ao trabalho de pronunciar o seu nome todo, não fosse ele entretanto morrer) que começou a ficar cada vez mais negro e com o cheiro do alho sempre omnipresente.

Tendo na cabeça superior estas dúvidas (na outra não tinha), começou a preparar uma expedição à Quinta da Fonte da Prata, sem conhecimento da sua mulher, o que bem vistas as coisas, até nem era muito difícil, porque ela estava sempre a planear como seria a próxima sessão de sexo, e não tinha tempo para se preocupar com ninharias.

Comprou um equipamento de alpinista, com um gorro, uma lanterna de cabeça daquelas usadas pelos mineiros, botas com protecção metálica, daquelas que os operários das obras usam raramente, diversos tipos de alicates, filtros daqueles usados para respirar em ambientes com pó, ou zonas com vulcões em actividade, ou com centrais nucleares problemáticas.

Cacilda acabou por reparar, que no estúdio do seu marido estava uma mochila enorme, muito pesada, fechada a cadeado, a que ela não tinha acesso. Não conseguiu resistir e perguntou ao marido qual era a finalidade de tanto segredo.

Quando ela lhe fez a já esperada pergunta, ele tinha pronta a óbvia resposta:

– Estou a preparar uma sessão de sexo para o dia dos teus anos da qual te vais recordar por toda a vida!

O resultado desta resposta deu para René ficar descansado sobre a razão da existência da mochila, mas Cacilda, que tinha pontos G por todo o corpo, das unhas dos pés até à ponta dos cabelos, começou de imediato a contar cada segundo, espalhando por toda a casa calendários com os dias que faltavam e que terminavam invariavelmente num sonoro: É hoje!

René conseguiu assim uns dias para preparar em paz a expedição à misteriosa Quinta…

Para escolher o melhor dia e hora, ele fez como os pescadores: leu a tábua da lua e das marés, e chegou à conclusão que teria de partir de casa num dia de Lua Nova, com céu nublado, à uma hora da madrugada, para chegar por volta das duas ao objectivo.

Na noite escolhida, excedeu-se em voluptuosos exercícios amorosos, de tal maneira que Cacilda já dormia a sono solto antes da uma da madrugada, para frustração dos habituais ouvintes do programa. Mesmo assim, deixou-lhe um bilhete para ela não ficar preocupada no caso de acordar sem ainda ter regressado.

Saiu de casa, mochila às costas e com o seu passo de tigre a preparar o ataque à presa. Habituado como estava a deslocar-se silenciosamente, nem os cães das quintas que atravessou notaram um vulto indistinto que se esgueirava furtivamente, aproveitando todas as lombas do terreno e todas as sombras, como se fosse a levitar, o que não é coisa pouca para alguém com o seu peso e envergadura.

Quando se aproximou da Quinta, verificou que tudo o que tinha estudado da sua arquitectura não lhe valia de nada: à noite todos os edifícios são pardos.

Tinha bem presente os relatos repetidos do infortunado Ralho e da afortunada Cacilda e, talvez por isso, conseguiu descobrir a entrada para o subterrâneo onde tinha sido encontrado o tesouro. Deslizou como uma serpente pela estreita abertura e entrou no amplo salão, sustentado por três colunas, que estava completamente vazio.

Começou a inspeccionar, metodicamente, como arqueólogo que era, todo o espaço, dividindo-o em quadrículas meticulosas.

Olhou o relógio: duas da manhã. Tinha quatro horas para tirar todas as dúvidas.

O piso irregular fazia-lhe lembrar o da capela de Alhos Vedros, cheio de protuberâncias e reentrâncias, facto que lhe dificultava imenso a progressão.

O seu procedimento começou por ser sistemático e cuidadoso. Com o pequeno martelo escavava um pouco, batia nos pequenos pedaços de pedra e nas lajes que pareciam estar na sua posição original, para tentar distinguir algum som estranho.

Pressionado pelo tempo, que se esgotava como se Einstein tivesse reinventado a relatividade, resolveu analisar o resto da quadrícula numa visão de conjunto. Como por acaso (não há acasos), a luz teve um reflexo dourado que lhe despertou a atenção. Ao aproximar-se, viu num azulejo o desenho de um olho e na pupila uma saliência como se um prego dourado lhe tivesse sido espetado.

Com a escova começou a retirar cuidadosamente os detritos que o cobriam, até ficar a descoberto todo o azulejo. Com o dedo indicador pressionou levemente a pupila dourada. Não aconteceu nada. Aumentou a pressão com o mesmo resultado. Com o pequeno martelo pontiagudo deu-lhe uma ligeira pancada. Ouviu de imediato um ruído, que no silêncio reinante, lhe pareceu o som do trovão. Atrás de si, juraria que cinco palmos abaixo do olho e três palmos para a esquerda, como por magia, uma pesada laje começava a levantar-se. Aproximou-se, cuidadosamente, com todos os sentidos alerta. Quando o ruído cessou, a laje estava na vertical deixando à vista uma entrada para o desconhecido.

Lançou o foco de luz para o buraco aberto a seus pés mas não conseguiu ver o fundo. Com as mãos agarradas solidamente no rebordo da entrada deixou-se deslizar de cabeça para baixo. Quando conseguiu acalmar a sua respiração ofegante, não sabia se mais pela emoção, se pelo esforço, escutou o agradável ruído da água a correr.

Pegou na corda fina e resistente, atou-a a um pilar com um nó de estribo ou de alpinista, como também é chamado, e deixou cair os trinta metros de corda pelo poço. Seria o suficiente para descobrir o mistério da corrente subterrânea? Tinha dúvidas, mas não tinha medo!

Começou a descida com os cuidados que se impunham para evitar uma possível queda no inferno.

Apesar de descer lentamente, depressa chegou ao fim da corda. Com a lanterna dirigida para o fundo julgou distinguir alguns reflexos que poderiam ser da água ou da sua imaginação. Olhando à volta conseguiu distinguir as paredes escuras e húmidas que o rodeavam. Um ponto despertou-lhe a atenção: o poço parecia ter saliências, que se poderiam chamar de degraus, como se os misteriosos construtores daquela obra o estivessem a convidar para continuar a descida. O que seria um problema para um indivíduo normal era, para ele, uma brincadeira de crianças. Começou a balançar o cabo com o movimento pendular do seu corpo e, no momento certo, largou-se, voando até à parede onde se agarrou como se as suas mãos tivessem ventosas.

Depois de normalizar a respiração, começou a deslocar-se na direcção do som da água que aumentava de intensidade à medida que descia.

Os degraus terminaram abruptamente. Agora, a parede lisa desaparecia como se o buraco alargasse para a escuridão. Uns metros mais abaixo, era difícil calcular quantos, sem pontos de referência, julgava distinguir a água ligeiramente ondulada, que fazia um ruído mais forte, como se houvesse algures uma queda de água.

Uma pergunta martelava a sua mente: Que fazer? Voltar para trás à beira de descobrir o segredo que podia revolucionar a história do Concelho e talvez responder aos mistérios que permanecem sem resposta, como a origem do poço de Alhos Vedros, o caminho secreto dos Templários para o Castelo de Palmela?

A resposta foi dada de imediato. Largou-se da corda, pernas ligeiramente flectidas, com os bicos dos pés a indicar a direcção da queda, o queixo encostado ao peito, as pontas dos dedos das mãos a tocarem a nuca.

Aterrou numa caixa de areia que parecia estar ali há séculos para o receber.

Olhou em volta e não teve dúvidas que tinha encontrado um local de reunião, para um número restrito de eleitos. Cavada na rocha estava uma mesa redonda e quatro bancos maciços de pedra. A parede mais próxima tinha a inscrição, ad arcem, que até ele, com o seu incipiente latim, sabia traduzir como “caminho para o castelo” e o desenho de uma seta.

O seu espírito aventureiro sobrepôs-se ao do cientista. Aproximou-se da água e depois de a cheirar e provar na concha das mãos, bebeu sofregamente. O caminho indicado pela seta tinha uma ligeira subida e o tecto parecia descer ao encontro da sua cabeça à medida que avançava, até que começou a caminhar curvado, depois de joelhos e agora, a rastejar. Na sua frente estava um buraco estreito com uma luz que encadeava a ponto de lhe fazer doer os olhos. Não havia maneira de a enfrentar visto que os tinha dilatados para verem na escuridão em que tinha estado mergulhado nas últimas horas. Com o lenço do pescoço vendou-os para filtrar a luz e poder avançar. O seu jeito de contorcionista fez o resto.

Após longos minutos, tirou a venda e começou a abrir os olhos, lentamente.

Não sabia se os seus olhos se escancaravam de espanto por ordem do seu cérebro ou do deslumbramento que o invadia. À sua frente estava uma caverna imensa banhada por uma luz que saía de centenas de pontos brilhantes, não deixando que qualquer sombra invadisse o mais ínfimo espaço daquela esplendorosa gruta.

Olhou o relógio para ver o tempo que lhe restava. Já devia estar a caminho de casa e ainda faltava enfrentar as dificuldades da subida. Tinha de deixar a exploração da gruta para a noite seguinte.

Teve de se socorrer de todos os seus recursos atléticos e experiência de escalada para chegar aos degraus. Já na rocha firme, agachou-se com as pernas tensas como molas, lembrando a si próprio que não podia hesitar, porque só havia uma oportunidade para se segurar, e que depois de agarrar a corda teria de resistir à tentação de aliviar a pega quando as suas mãos começassem a queimar ao deslizar por ela, até conseguir parar o seu corpo em queda livre. Lançou-se no espaço e fechou as mãos na corda, fazendo por esquecer a dor lancinante da queimadura por atrito nas suas mãos. Depois de tudo isto, os trinta metros de subida até ao claustro foi feito com facilidade.

No caminho para casa, lembrou-se da artimanha que os arquitectos das pirâmides usavam para enganar os ladrões. Tinham diversas entradas, um autêntico labirinto, onde não poucos perderam a vida, sem encontrarem tesouros e muito menos a saída. Algumas vezes, até o seu construtor lá ficava enterrado para o faraó ficar com a certeza que o segredo seria guardado para toda a eternidade.

Os Templários para guardarem os seus segredos mais valiosos punham como isco um tesouro menor, mais fácil de alcançar, para que algum ladrão profissional ou ocasional julgasse encontrar o verdadeiro tesouro e abandonasse as pesquisas. Para além disso, colocavam-nos em diversas localizações, à semelhança dos fundos actuais que colocam os capitais por diversas aplicações, minorando as perdas e aumentando os lucros.

A caminho de casa a sua mente estava a traçar o plano para voltar à gruta das maravilhas, sem conseguir qualquer resposta para as perguntas que lhe assaltavam o espírito: Quem e porquê escavara aquela gruta? Que luz era aquela? Quem é que tinha montado os mecanismos que continuavam a funcionar tão perfeitamente? Haveria outro tesouro mais valioso lá escondido?

Tão embrenhado estava nos seus pensamentos que só quando meteu a chave na porta se lembrou que Cacilda devia estar cheia de saudades… e ele tão cansado!

Os sacrifícios que um verdadeiro homem tem de fazer!

domingo, 29 de janeiro de 2012

Capítulo 7

Um casal em forma de Península Ibérica

 Cacilda boquiaberta olhava para aquela luz imensa que brotava por todo o lado. Meu Deus, donde viria tanto ouro. Eis, que num ápice, milagre dos milagres, podia estar aqui a solução para a crise económica do país. Os pensamentos voaram até René Magrite e perante tanta riqueza pensou que poderia com facilidade realizar o almejado sonho de levar os “touros de morte” até ao Congo Belga. Mas Deus não quis. E se depressa o enigmático tesouro foi revelado, mais depressa o mandou de novo tapar. De súbito a viga central que suportava o tecto subterrâneo partiu e a derrocada que seguiu acabaria por tapar a saída para o exterior. Vítor e Cacilda ficaram fechados nos subterrâneos. Mas como um azar nunca vem só, uma pedra bem apontada e disparada embateu com estrondo na cabeça do Vítor que desde então não mais se chamou Ramalho. Passou a chamar-se, simplesmente, de Vítor Alho. A parte da Rama perdera-se definitivamente. De maneira inversa, a árvore mistério nunca mais deu alhos e, doravante, só passou a dar ramos. Continuou sempre sem tronco e sem folhas, e agora também sem alhos, mas continuou a dar ramos, muitos ramos, e por isso o mistério perdurou.

Bem, então o cenário que se nos oferece, a nós e ao leitor, é de uma cave subterrânea extensa, do tamanho de meio campo de futebol, cheia de pepitas de ouro, pedras e areias amontoadas como resultado da súbita eclosão e deitados no chão o Vítor Alho que, sem dar sinal de si, da cabeça sangrava e a Cacilda que em absoluto pânico chorava. Desalmadamente, chorava. O que fazer, perguntava eu, escritor, pela cabeça de Cacilda? Como continuar uma estória que aparentemente desabara. Sem saída para o exterior a estória não tinha mais saída. “Que fazer?”, perguntou de novo. E, de repente, acendeu-se a luz. Não a do subterrâneo, mas a dos pensamentos. Vou anexar uma fotografia.


Eis que, afinal, o chão do subterrâneo espelhava a luz do sol. Renascia a esperança, havia uma saída. O problema é que o orifício que dava entrada à luz não permitia a saída de um corpo. A abertura revelava-se demasiadamente estreita. Mas podia gritar-se. Gritar-se o mais que podia na esperança que alguém ouvisse. E Cacilda assim o fez.  Começou a gritar. Não conseguia saber do resultado do esforço, e isso naturalmente que a deixava desesperadamente ansiosa, mas gritava. E gritou outra vez, e mais uma vez gritou. Ficou rouca. E nada. A sorte não se fez anunciar e Vítor Alho continuava a sangrar.

Sentiu-se desolada e derrotada. Sentou-se no chão e acariciou o rosto de Vítor e, claro que, como sempre acontecia lhe cheirou a alho. Ficou com a mão em sangue e lambeu-lhe o sangue. No desconforto dele sentiu o seu próprio desconforto. A fome, a sede e o frio foram-se instalando, a pouco e pouco. E, depois, aquele forte cheiro a bafio, a humidade dos lugares escuros e ermos, o tremendo medo que houvesse ratos, osgas, morcegos. Começou a cobrir-se com pepitas de ouro. A si e ao seu Vítor. E eram as pepitas de ouro que a alimentavam e defendiam, tal como eram elas que iam evitando que a alma de Vítor se esvaísse. Era verdade, a energia do ouro fazia milagres. Mas estranho cenário, o súbito encontro com a riqueza, o imenso brilho do ouro, afinal acabara por atrair a desgraça. Triste sina. Percebia agora com muita nitidez porque se falava tanto nos “diamantes de sangue”. A ganância de uns acabaria por dar sempre no prejuízo de outros. Mas, esperança acesa, cá se fazem, cá se pagam.

A noite instalou-se. Tanto foram as pepitas de ouro empilhadas que acabou por ficar com uma razoável mancha de céu como horizonte de sonhos. Todavia, escura, muito escura. Acabou por fechar os olhos e no meio daquele terror de silêncio ouvia o imponente respirar da noite, e acabou por se deixar de dormir por tanto sonhar em pesadelos. E nem dormia, nem sonhava. Agoniava. Lentamente agoniava no meio do pétrido sepulcro. Os terríveis espíritos das trevas invadiam-lhe as entranhas. E ao abrir os olhos acrescentavam-se aqueles enigmáticos pássaros de fogo como um sinal incompreensível que o céu enviava. 


Entretanto, haveria de se fazer dia. Outra coisa não seria de esperar. Mas antes de continuar a estória permitam-me um pequenino desabafo. “FODA-SE, SÓ AQUELES GAJOS É QUE ME FAZIAM PASSAR UMA TARDE DE SÁBADO A ESCREVER UMA HISTÓRIA COMO ESTA”. Mas, pronto, como é com amizade e carinho, adiante. Em prole do futuro, dos nossos filhos, e desta incrivelmente surpreendente humanidade, adiante. Só por isso não me importarei de cá vir outra vez. Mas se acaso tiver de vibrar na paz dos anjos, ilhas de amores, decerto que adianto. Assim seja!

Deixem-me sonhar, diria o José Torres. 
(É verdade que os leitores mais jovens e estrangeiros não perceberão nada do que se acabou de dizer, mas basta passar á frente porque a interjeição não é para explicar.)

E, pronto, agora vai ser em forma de resumo que é para não maçar mais. O Vítor Alho e a Cacilda acabaram por ser salvos dos escombros. As obras de restauração do Palacete da Quinta da Fonte da Prata acabaram por dar à luz dois corpos poeirentos, pálidos, magricelas, salvos pelo brilho do ouro e dos pássaros de fogo que não mais os abandonaram. O Vítor Alho, "temos pena" como diz a minha vizinha, nunca mais recuperou do acidente. Perdeu grande parte da memória, estranhava-se a si próprio, não reconhecia a Cacilda como sua esposa, renunciou a viver com ela, reformou-se e arrastou-se pela vida, até ao anunciado fim. Igualmente, os “touros de morte” varreram-se definitivamente. Entretanto, René Magrite, consternado, veio de visita. O Vítor não o reconheceria. Tão triste ficara René. Mas não se perdeu tudo. São tantas e misteriosas as voltas que a vida dá que acabou por se apaixonar por Cacilda. Tudo aconteceu quando Cacilda o convidou para irem juntos ver um jovem cantor, sevilhano, que tocava “Flamengo”. E eis que no meio de um ardente desejo que só a música trás, puxou dos lábios dele e entornou-os violentamente contra os seus. E agora René Magrite, ficas por cá, regressas à Bélgica, ou matas definitivamente as saudades e retornas ao Congo Belga?

Entretanto, eia a música que produz milagres e que juntou definitivamente o amoroso par como se da Península Ibérica inteira se tratasse:


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

LIVRO COLECTIVO II



6º Capítulo


Naquela manhã de Sábado o olhar que emancipava Vitor Ramalho de saudade esbatia-se-lhe no rosto. Deu meia volta estendido na cama e aconchegou a almofada para melhor pousar a cabeça. O cansaço da noite anterior tinha-lhe dominado os músculos e os ossos por completo.
  Cacílda porém, levantada sobre suas pantufas de lã, cumprimentou o sol que raiava a varanda com o espreguiçar habitual de um novo dia. Vitor fizera-lhe lembrar os produtos de comércio que usava em sua tenra idade e a nostalgia tinha ganho uma nova cor aos seus olhos.
  Enquanto ela torrava o pão do pequeno almoço ouvia-se a sua voz soprana para que o marido se levantasse da cama . « Despacha-te Vitor! Sai da cama, combinámos com eles ao meio-dia nos “Arcos” para almoçar e ainda temos o Palacete da Fonte da Prata para fotografar antes disso». E no corpo do Vitor ouviam-se duas vozes opostas entre si, uma queria que ele se levantasse no momento e a outra fazia questão de o prender por mais uns minutos à almofada. Até que da sua boca de sono lhe saiu: «Vou já, Vou já. Este colchão é uma verdadeira nuvem de sonhos possaaa…». E a mulher respondeu-lhe « Não te bastaram as catorze horas de sono? Quer dizer, partiste o relógio quando ele te despertou, já estavas acordado e de boa lucidez, eu levanto-me e tu voltas a adormecer, AIAIAI».

 No hall de entrada Vítor Ramalho e Cacílda também ela Ramalho, marido e mulher, preparavam-se agora para sair de casa. Já no carro, a caminho da Fonte da Prata, Cacílda manipula a máquina fotográfica no intuito de provar a si própria que o instrumento possuia a qualidade necessária para que a sessão fotográfica decorresse como previsto.
  Vítor parara o carro, e defronte dele com uma imponência desgastada o Palecete da Fonte da Prata aparecia por entre as árvores que o circundavam. Uma nostalgia porfundamente inconsciente cobria por completo Vítor e sua esposa como se a crise saudosita que haviam tido naquela manhã fosse a supreficie nostálgica de uma profunda saudade, quase eterna, que agora apreciavam com olhos detidos no casarão.

«É melhor começares por tirares fotos á faxada da capela Cacílda» dizia Vítor afastando as ervas daninhas dos pés.  «Vai tirando depois à porta de entrada e ás arcadas do rés-do-chão que eu vou dar uma volta pelas traseiras». E Cacílda ocupara-se de fotografar por inteiro a parte da frente do palacete. Havia em cada fotografia uma originalidade particular, o premir no botão era um momento exacto de uma hitória que acabara de nascer.
 Ela lembrava-se agora de René como homem cavalheiresco possuidor de um charme  Afro-Latino e de um olhar que seduzia pelas duas pérolas que continham cada uma o seu universo verde. Dizia agora para consigo «Que belo homem. Tenho imensas saudades tuas René», e mais uma fotografia era tirada por Casílda, agora à palmeira que se erguia junto do palácio como um mastro representando os trópicos no Concelho da Moita. E ela, por orientação da memória e pelo flach da máquina, regessava a África e a René esbatendo-se numa espécie de diálogo interior…

Vítor Ramalho herdara o nome do avô, razão pelo qual este numa vez quando pelos seus tenros quinze anos ficou dono de um fenómeno prodigioso no seu lote agrícola onde trabalhava a terra. Este terreno, que pela criatividade do solo e a imaginação do clima, tinha sido o parteiro natural de uma enorme árvore, de quase vinte metros de altura que terá vindo ao mundo com duas particulariedades cedidas muito raramente, ou quase nunca, pela mãe natureza. Ela que, vá se lá saber porquê, não tinha tronco mas só ramos, ramos que se elevavam a vinte metros de altura. Claro está que esta não é das duas a particularidade mais fascinante, pois a seguir desta havia a outra,  no facto de que a dita árvore estava carregada de cabeças de alho. Nela podia ter nascido, na maior parte, folhas que é o mais normal e abundante numa árvore, mas não, parecia que todas as folhas tinham sido substituídas só e somente por cabeças de alho que nem dava hipótese de uma folha nascer e ser educada num ambiente que, a princípio, é seu por natureza. O mais engraçado é que os alhos não nascem nas árvores, mas sim por baixo do solo como sendo uma raíz. Isto ainda aumentava mais a admiração na cara das pessoas pois não havia no mundo, pelo menos que houvesse conhecimento, tão grande fenómeno como aquele.
 Daí o nome Ramalho ser dado ao avô de Vítor, não por uma herança geneológica, mas por uma alcunha que se tornara apelido, dado pelas pessoas que conheciam o dono da árvore mistério, pois sem tronco e folhas, a árvore era um misto de RAMOS + ALHOS que disto resultaria o nome RAMALHO.

Trazido pelas traseiras do frondoso palácio, Vítor dirige-se a Cacílda que acabara de se sentar nos degraus da capela - «O há nas traseiras?» pergunta esta ao ver o marido vindo ao seu encontro de cabeça baixa. «Tudo» responde pensativo. «Podes ser mais explícito nisso a que chamas tudo?»
  Vítor tinha visto algo, o seu rosto mostrava-o. Tudo o que ele vira por detrás do palácio era normal haver num lugar inabitado há séculos, à excepção daquilo que possivelmente mantinha Vítor atordoado. A sua expressão deliniava um rosto de quem aparenta uma grande surpresa. Sim era surpresa, era essa a palavra certa para descrever o que lhe transparecia de emoção
 «Cacílda! Descobri algo para lá da imaginação humana»-disse estupefacto. « Estás a fazer-me um suspanse de assasino que mata com a curiosidade. A que te referes?». Cacílda desesperava impaciente para que Vítor resolvesse o enigma que se criara nos degraus da capela do palácio. «Levanta-te, vem comigo e trás a Máquina. Não faças perguntas, já vais ver.»

Guiado pelo braço de Vítor, Cacílda passava agora pela porta das traseiras do palácio. O cheiro a mofo e o frio que se fazia sentir originou que a sua mente imaginasse aquele lugar séculos atrás com todo aquele entulho, pó e teias de aranha restituídos. Assim como condes e marqueses deanbulando naquele espaço vivendo uma vida digna de nobre, numa casa limpa e arejada. Talvez fosse esta a casa que Cacílda fantasiara nos seus sonhos de menina.
  Começavam agora a descer umas escadas em caracol, que havia a um canto da divisão, e quando chegaram lá abaixo a luz começara a escassear, mas ainda se podia ver por um raio de sol o que o caracol das escadas deixava transparecer degraus abaixo. De frente deles uma porta ostentava a sua fachada, era uma entrada copiada das entradas de uma civilização que existira há muitos séculos em África. Vítor estava bem informado  acerca da tal civilização, pela sua experiência de arqueólogo e pelo seu interesse incondicional por história, em que passara vários e longos anos da sua vida lendo artigos que encontrara em jornais e revistas assim como na sua infância em África ter ouvido muitas vezes falar da célebre tribo que compunha aquela civilização

“Prísia” era assim o nome da cidade, o berço daquela humanidade que há muitos anos habitara algures no continente africano. Os Prísios eram um povo artístico em que a caça e a agricultura não existiam, pois era possível viver sem comer e beber água. Isto através de cultos em que pelas artes os deuses lhes davam tudo aquilo que mais necessitavam. Imagine-se que quem fizesse parte de uma peça de teatro tinha o corpo alimentado por uma semana, quem fosse ver teatro tinha o corpo alimentado por três dias, quem fizesse uma escultura em pedra matava a sede durante uma semana e meia, quem fizesse um bailado não sabia o que era o frio ao longo de cinco dias, os que pintassem uma gravura não tinham calor no período de meia semana e, assim, aqueles que poemas escreviam estavam protegidos contra todo o tipo de perigos existentes na selva.
 Era hábito neste povo haver orgias gigantes pelo menos quatro vezes por ano, uma em cada estação. A razão estava em libertar todo tipo de energias negativas assim como o ego, ciúme e tudo aquilo que há nas emoções como sendo mau. Era uma civilização onde somente o verdadeiro amor reinava.
   
  Havia um olho desenhado no lado esquerdo da porta. Vítor encarava-o com uma forma natural de quem já conhece os cantos à casa, pois em dada manhã era a segunda vez que fazia determinada operação. O intuito era passar a Cacílda a maior das surpresas, que ele já mais sentira no seu corpo adulto.
  Ele sabia, felizmente, como um olho desenhado na parte esquerdo de um portão Prísio funcionava, que com cinco palmos abaixo do olho e virando três palmos para a esquerda em L haveria de encontrar um sensor de lhe abriria o portão. Com a mão esquerda passou leve e lentamente numa área da parede onde nove tijolos desenhavam uma espécie de jogo do galo.
  Aos Olhos de Cacílda, o portão começara a abrir-se lento, e nos seus ouvidos o  barulho da porta era grave, roçando pela parede. Em Vítor, ar de surpresa era constante e um novo ar esbatia-se no rosto de Cacílda. Á sua frente numa cave subterrânea que equivalia a uma área de metade de um campo de futebol, ouro toneladas e toneladas de pepitas de ouro ao longo do espaço enegrecidadas pelo pó e teias de aranha. Pelas paredes laterais estendiam-se metros e metros de diamantes e pedras perciosas que curiosamente e por magia tinham nascido e crescido dentro e fora delas. 



5º Capítulo
Crise saudosista

Nove e meia da manhã, mais coisa menos coisa e Vitor Ramalho entreabre os olhos, ao som do despertador redondo de números romanos que estremecem com o vibrar da dupla campainha, que teima em prenunciar um som, por sinal bastante incomodativo e repetitivo.
De ramelas coladas aos cantos dos olhos, e de cabeça lavada no interior, devido às catorze horas que dormira de seguida, resultado das 8 garrafas de vinho que circularam ao jantar da noite anterior com a presidente da junta e dois rapazes da história local.
Apático com a cabeça atarraxada nas almofadas, lá começou a conjecturar o que o íntimo pensamento lhe ordena.
Estica o braço de forma a calar de qualquer maneira o despertador que já fora de seu pai e que Cacilda insistira que permanece-se na mesa-de-cabeceira, não pelo valor sentimental, mas acima de tudo pelo valor temporal da peça em si.
O som repetitivo do despertador deu azo a um susto para Cacilda que acorda com o resultado de transformação em que se tornou o despertador ao cair no chão.
Peça para aqui, peça para ali, ponteiro das horas que se sumiu e vidro partido que melhor mostrava a cru as horas, agora apenas representativas.
-Ramalho viste o que fizeste? Afirmou Cacilda em tom de reprovação.
--Só assim acordas-te, vê lá a falta que ele te fazia!
-Não tem nada a ver com isso, trata-se de um despertador que já tem mais de 40 anos, que já foi do teu pai e que além de tudo é uma peça que já não se faz.
Tão bonito!!! Já viste só o design!!!
-Oh Cacilda não me venhas cá com essas coisas para cima. Sabes bem que eu também gostava bastante do despertador. Aconteceu!!!
--Ainda vais ter saudades dele vais ver.
-Tal como tenho saudades do Congo!.. de África!... e de tantas outras coisas que me lembro e que me contavam.
Olha… tu lembras-te do” Lusito Caderno Escolar”? Julgo ser para ai dos anos 40, e que tinha como tema a mocidade portuguesa, em que a capa era alusiva aos lusitos, parte masculina do movimento, e na contra-capa, às lusitas, componente feminina.
--Sim, lembro-me vagamente, mas também me lembro do “Caderno Escolar Restauração”, havia uns azuis e outros verdes, se não me engano.
-Esse ai não me lembra bem! Mas lembro-me dos lápis “Viarco” que eram umas caixas com doze lápis, cinzenta, que tinha um casalinho de miúdos com um cão e acho que também tinham um rapaz da mocidade!
-Pois é do tempo em que ainda se utilizava o papel químico da Pelikan, aquela marca que tinha um cisne.
--Sim, sim e a tinta-da-china.
-Eram outros tempos, também me recordo de quando para ai em mil novecentos e setenta e tal, se precisava de ter uma licença para isqueiros.
Acho que era uma licença anual para uso de acendedores e isqueiros, até tinha indicações e tudo.
--Como as coisas eram! Como as coisas eram!
Questionava-se Ramalho de olhos colocados no tecto, de mãos cruzadas por trás da cabeça, vagueando em pensamentos.
Cacilda volta-se em direcção a Ramalho, embrenhada em pensamentos saudosistas.
-Olha vistas as coisas, as garrafas de vinho que bebemos ontem ao jantar, naquele tempo era uma coisa muito bem vista.
Lembro-me de um anúncio que aparecia nas revistas e jornais da altura que dizia:
“Beber vinho é dar o pão a um milhão de portugueses”
--E ontem bem que contribuímos Cacilda, até me dá vontade de rir só de pensar.
E aqueles anúncios sobre as regras de etiqueta para as senhoras, lembras-te!
Mostravam uma gravura, que representava uma senhora a pintar-se à mesa de um café ou restaurante, e em que dizia que era um acto absolutamente condenável, uma vez que o maior encanto de uma mulher naquela altura, era a modéstia e o pudor, portanto a mulher não deveria de tratar a sua toilette em público, tal como o fazia em sua casa.
-Claro as senhoras correctas e bem-educadas, só deveriam retocar a sua toilette na casa de banho.
Que coisa, que coisa, hoje em dia até nas filas de trânsito se vê as rapariguitas e algumas mulheres a pintar-se ou a retocar-se!
Olha, eu de vez em quando faço o mesmo. Essas coisas da elegância e etiqueta…
--E o anúncio do banco para as senhoras!
Acho que era o Banco Pinto de Magalhães na altura.
“Minha senhora pague o vestido com um cheque, é seguro e ganha em elegância”
Agora!!! Agora elegante é o cartão de crédito ahahahahahah.
-Pois é amor mas nesse tempo as senhoras usavam umas coisas tipo cadernetas, em que anotavam as despesas do dia, consoante o dia da semana. Lembro-me da minha mãe ter as continhas todas feitas, tudo apontado.
-Oh amor então e agora? Olha que agora como isto está, também é preciso estar sempre a fazer contas, ai se é, se é.
--Pois, pois, lembro-me que a minha mãe para fazer um bolo tinha que fazer uma certa ginástica no orçamento.
Por breves momentos um silêncio toma conta do quarto, Ramalho para um lado, Cacilda para o outro, cada qual fica absorto pelos seus pensamentos.
-Por falar em bolo… ainda hoje existe a “Margarina Vaqueiro”, vê lá os anos que tem!
--Hummmmmmm, a minha mãe fazia cá uns sonhos de laranja, lembro-me que na altura já utilizava essa margarina.
-Dói-me um pouco a cabeça Ramalho. Deve ter sido do vinho ontem.
--Olha toma um “Melhoral”,
-Pois era.
--Ou então foi de ires fumar um cigarro à porta do restaurante, estava uma noite fresquinha.
-Noutros tempos fumava-se em qualquer lado, se bem que nunca gostei muito de estar a comer com muito fumo.
Olha e os “Cigarros Porto”!…”Para um trabalho de responsabilidade…cigarros Porto…Na base da sua decisão”.
Lembro-me que na fotografia do anúncio até aparecia um estetoscópio…como os tempos mudam.
Mas ainda sobrevivem algumas coisas desse tempo…
--As canetas BIC, haviam umas que eram “Negro da China”…“Escreva mais escuro…leia mais claro.”
Ramalho debruça-se sobre Cacilda e dá-lhe um beijo apaixonado.
-Olha a barba, estás a arranhar-me!
--Já não há GILLETE amor, tens de comprar.
Uma gargalhada sonora, invade a conversa.
-Queres uma caneca de leite? Vou aquecer e fazer uma torrada.
Cassilda levanta-se num ápice saindo pela porta do quarto.
--Olha vê lá se há “MILO”!!!
-MILO? o que é isso?
--Não te lembras?..era um tónico que se misturava na altura ao leite, acho que era da “Nestlé”………..”Milo combate o cansaço e fornece energia para todo o dia”. Era uma coisa assim do género.
-Tu lá te lembras dessas coisas todas, lá te lembras.
Queres gozo (susurra).
Olha só há “Farinha33”
--Ena pá, essa farinha dava brindes e tudo. Olha antes quero um Yoghurt “BOM DIA”…dá saúde e energia.
-Só Danacol mor. Só Danacol.
Ambos riem à gargalhada.
--Olha mor já agora, quando trouxeres o leite traz-me ai o jornal de ontem para dar uma olhadela que ontem não tive tempo.
-Já joguei fora amor, agora se quiseres só a “Crónica”
Queres a Masculina?...ou a Femenina?
--Olha traz-me antes a “Plateia”…eheheheh.
-Olha deixa-te mas é de conversas, levanta-te e vai já tomar banho que já são onze horas.
--A que horas nós combinámos ir almoçar com eles?
-Ao meio-dia e meia, mas não te esqueças que ficámos de ir tirar umas fotografias ao que resta do Palacete da Fonte-da-Prata.
Olha e vê lá se não te metes com conversas de política.

Algumas referências visuais.














4º Capítulo

A visita a Tournai cumpriu-se e o Pacto de Geminação fortaleceu-se. Vítor Ramalho e sua Cacilda vieram de volta. Adeus Bélgica, adeus Congo Belga, adeus René Magritte. Que prazer ter conhecido aquela magnífico preto de olhos verdes, encarnação viva de pintor surrealista. Em tudo que não só no nome. Relembrava agora, estendido na sua cama, as histórias do outro. Da homónima de sua esposa Cacilda, do seu Mestre de obras André Bréton, de Paul Éluard e Salvador Dali, dos sonhos infindáveis com a escrita automática, dos antagonismos ideológicos com Picasso.

E como se deliciava com a leitura de uma brochura que René lhe oferecera. A tal escrita automática. Então não querem lá ver:

“Eis aqui espaço sem espaço, fundo sem fundo, onde a tua luta termina. Descoberto que foi o mistério das intrigas espanholas que se abateram sobre a Galiza, agora não haveria muito mais que esperar. Meteu-se num avião a jacto para perceber o que era ultrapassar a velocidade do som. Agora gostaria de viajar acima da velocidade da luz só para provar ao Albert que havia mais história para além do além. A verdade é que não queria envelhecer. Então mandava os seus pincéis com extrordinária violência e incrível velocidade contra a tela. E que dizer do seu amigo Avida Dollars. De ter calçado uns sapatos dois números abaixo do que realmente calçava quando da defesa da sua tese de doutoramento. Assim quando falasse seria mais fácil pôr-se em bicos dos pés e centrado que estaria na dor imensa nem se lembraria das dificuldades da necessária explanação. Merda, merda, mais merda, foram os temas das suas primeiras obras.

De repente um clarão, iluminavam-se os céus e fez-se de dia. O sol nascia, milagre vulgar, e ninguém se aborrecia. Avé Maria. Lá em casa andam todos bêbados. Pudera com tantos cigarros atrás uns dos outros é que nem a Cacilda escapava à fúria do Brandy que atravessava aquela sala de estar. Quanto à Televisão, futebol para eles, telenovela para elas. Mas o Porto, ai o Porto. Quem diria que o Falcão ganhava só 70 mil euros por mês. Porra de colombiano, famoso artista e tão mal pago. Mas isto são fases, ciclos de história. Estava visto que o Futebol tinha os dias contados, então não jogaram os dinossauros a ver quem partia mais ossos de uma só dentada?

Decisão das decisões, a partir de agora só sairia à noite dia sim, dia não. De tal forma se iluminava o lampião da sua rua que os serviços camarários gastavam um dinheirão a substituir lâmpadas. É verdade que a sua vizinha Virgínia ficava nuito mais linda à média luz, por isso pediu que pusessem uma luz mais amarela dados os seus traços orientais. Vazio dos vazios, explicações das explicações, também se um filho da puta de um inglês tinha produzido teorias políticas imensas donde saiu o nosso contrato social, porque não havia ele de levar a mal. Definitivamente, não havia mais pachorra para os discursos políticos. O timbre das vozes era de martelo de bigorna para ouvidos sensíveis. Os nós das gravatas eram motivos para apertar o cinto. Os passos de coelho e as portas a bater faziam o pesadelo dos que eram só cretinos.”

E etceterá (em francês).

(a partir daqui tem música)


Vítor Ramalho adorava Flamingos e Flamengos, e era pelo Flamengo que torcia no futebol brasileiro. Eis o motivo porque escolhera uma cidade belga para uma parceria de geminação. Flamingos dada a descoberta semelhança ortográfica.

Paco de Lucia, o brilhante guitarrista gitano, era para si mais que um Deus. Não havia cd que lhe faltasse, não havia concerto a que não fosse. A “Conferência dos Pássaros”, em Castro Marim, o melhor de todos. E como gostava de flamingos assim gostava da irmã Lúcia. Era de tal forma amante da cultura flamenga que não havia semana que não fosse ver os ensaios das Sevilhanas na Capricho Moitense. Também gostava de largadas de touros e de touros no espeto, e era acérrimo defensor dos touros de morte. Nisso preferia a Espanha. Talvez um dia, se a oportunidade surgisse, e as responsabilidades familiares permitissem, haveria de montar residência no país vizinho. Ficaria mais perto de tudo o que culturalmente admirava. Certinho e direitinho.

Agora que conhecera René Magritte e dada a forte admiração pelos seus sonhos de voltar a África acabara por aderir ao surrealismo. Uma mistura explosiva, pensava, surrealismo e touradas em África, eis um Projecto com futuro. Se René voltasse ao Congo estava determinado a estender uma geminação a África. E logo se pôs a pensar na terra vermelha tão característica daquela região do globo; da baforada de ar quente que lhe invadira os pulmões até nunca mais; da sequiosa sede diária regada com toda a alcaria imaginária; e nos comprimidos de quinino para prevenção da malária, mais a obrigatória vacinação contra a febre amarela. Ai, Luanda, Luanda, tão amigos que nós éramos, e ainda somos. A ilha de Luanda, o Mussulo, as palmeiras debruçadas sobre o Atlântico, o Paralelo 2000, o Bairro de Alvalade mais seus jantares ministeriais e as tracejantes… Eu esclareço, as tracejantes eram rajadas de metralhadora, provavelmente russa, que geralmente à noite cruzavam os céus quando alguém mais distraído dava umas goladas em álcool puro e, de imediato, passava à comemoração da vida. O país, nessa altura, atravessava por uma cruel guerra civil, daí a grande minagem do território e os estropiados de guerra. Enfim, coisas de menor importância que justificavam a luta pela manutenção do poder.

Deitado na cama do seu quarto, os pensamentos atropelavam-se, mas o destino era comum. Refletia sobre a sua ida à bela cidade romana de Tournai e era a partir de lá que admirava o quadro que René lhe tinha oferecido, esse mesmo que carinhosamente pendurou na parede da frente do seu quarto dada a posição em que sonhava. De uma colagem surrealista se tratava, assinada por Marie Louise des Saints, essa mesmo que não era filha do José Eduardo dos Santos, o supremo líder.

(clique em cima para ampliar e admirar os pormenores da colagem)

Umas breves palavras para Cacilda. Pertencia ao grupo de Sevilhanas da terra, gostava de touradas e de touros de morte, adorava telenovelas e trabalhava nos serviços sócio-culturais do pelouro da cultura. Não percebia nada de pintura.

Nestas coisas das geminações há sempre o momento da visita do outro. Pois bem, René viria à Moita. Ainda preto, ainda com olhos verdes, ainda Magritte. Vítor Ramalho tinha-se esmerado, não queria que faltasse nada. Recepção no Salão Nobre dos Paços do Concelho com toda a edilidade reunida e almoço no Restaurante da Praça de Touros. À chegada a fanfarra dos Bombeiros Voluntários da Moita que tocavam “Viva a Espanha”. À refeição touro no espeto, acompanhada de uma exposição surrealista de um cliente com as cotas em dia e vídeo de um Pedrito que espetava fundo até o sangue jorrar em bica. Lindo. Palmas muitas palmas. Olé.

Haveria agora que mostrar o Património e que não éramos menos romanos que eles. Ora deixa-me pensar, património, património, vamos a Alhos Vedros. Havia que falar das escavações arqueológicas, da presença fenícia e romana, das histórias de confrontos entre mouros e cristãos, da formação de Portugal, da medieva Igreja, de D. João I, do Palácio da Graça, da visita da Ínclita Geração, sim do Infante D. Henrique, da elaboração dos planos para a conquista de Ceuta primeiríssima etapa da Expansão Ultramarina, da ligação de Afonso de Albuquerque, vice-rei da Índia, e sua família ao velho concelho, de D. Manuel I, do Foral de 1514, do nosso filho Barreiro quando deixou o lar paterno em 1521, de Camões e do Rei Celeuco, dos antigos Paços do Concelho, da prisão, do velho cais, das fragatas, da cal, do sal, do sapal e da cortiça, da fauna e da flora, do cinema, da Capela da Misericórdia, do Palacete da Fonte da Prata (e etceterá, em francês).

Mas como fazer? Se os documentos escritos são poucos, os vestígios patrimoniais já escassos e velhos, os edifícios em ruínas e por classificar, se não temos museu, se não há mapas, nem roteiros e nada está legendado... Como fazer?

Bem, há que contactar a Junta de Freguesia, convida-se um ou dois rapazes da história local, fala-se do assunto, come-se um queijinho de Azeitão e brinda-se com Moscatel de Setúbal, e já está. Fica a coisa desenrascada. Depois se falará do Congo belga, do surrealismo e dos touros de morte, em África. E, no fim, poderia ouvir-se a Presidenta dizer assim: “Estão a ver, eu não dizia que o nosso património histórico não tinha uma importância por aí além”. Mas não disse, não fosse o convidado ficar mal impressionado.

Amanhã falaremos de política, concluiu Vítor Ramalho. E mais não disse.



3º. Capítulo

Vítor Ramalho estava um tanto ou quanto eufórico pois ao contrário da sua esposa Cacilda, que o acompanhava na viagem, era a primeira vez que andava de avião embora disso não quisesse dar ideia pois temia ser tomado por provinciano, de modo que tudo procurava reter com a curiosidade própria de uma primeira vez ainda que simulando um alheamento característico de quem vive uma rotina. Após as cerca de três horas de voo na TAP, durante o qual lhes foi servida uma ligeira refeição, a voz do comandante indicou-lhes que deveriam retomar os seus lugares e apertar os cintos pois que estavam prestes a iniciar a descida para o aeroporto de Lille-Lesquin, onde a temperatura rondava os 22 graus, a humidade era a normal para a época e o sol brilhava. Vítor constatou que na mesma viagem visitava dois países já que o aeroporto onde ia aterrar se situava em França, ainda que a apenas dez quilómetros da fronteira com a Bélgica, donde seguiria para Tournai, uma das mais antigas cidades belgas, com perto de 70.000 habitantes e classificada pela Unesco como Património da Humanidade. Tinha procurado informar-se acerca das atracções mais importantes da cidade e a sua curiosidade era grande.

Após a aterragem, que decorreu sem incidentes, e o sempre aborrecido tempo de espera com a recolha das bagagens apanharam um táxi para o Centre Communitaire de Tournai – instalações sob administração da edilidade de Tournai e que servia como ponto de apoio para actividades culturais e protocolares – onde ficariam instalados durante os três dias que duraria a estadia. O dia estava luminoso pois o sol brilhava num céu azul apenas manchado aqui e ali por umas poucas nuvens altas. Eram cerca de vinte quilómetros que teriam de percorrer por via rápida, sem grande trânsito naquele fim da manhã, e que Vítor, relanceando avidamente o olhar pela janela, aproveitou para se familiarizar com a geografia da região. Chegaram. Tinham a recebê-los um funcionário do Centre Communitaire de Tournai que os ajudou a instalar e se colocou à sua inteira disposição para a satisfação de qualquer necessidade que lhes ocorresse.
Vítor temia que o seu francês rudimentar, não obstante as aulas e o estudo que lhe dedicara nos três meses que antecederam a viagem, lhe impedissem fluência na comunicação ou, mais grave ainda, um incorrecto entendimento do que lhe diziam ou perguntavam.
O edifício municipal era térreo e amplo, rodeado por uma zona ajardinada onde se destacavam, pelo seu porte e imponência, algumas árvores. Vítor era um apaixonado por árvores e, para além de algumas que lhe eram estranhas e não soube identificar, conseguiu reconhecer exemplares de pinheiro de flandres e de ficus elástica comummente conhecida como árvore-da-borracha. Bem pensado registou Vítor, já que uma era autóctone – havia mesmo ainda algumas extensas florestas de pinho de flandres e até ali bem perto - e a outra ligava-se profundamente à sua história por via do passado colonial da Bélgica em África, facto que iria servir de base a uma longa divagação na sua conversa com René, embora disso Vítor ainda não tivesse conhecimento nem pudesse prever.
Foram instalados numa espécie de anexo independente constituído por um quarto amplo, casa de banho e uma sala equipada com uma pequena kitchenete. Os aposentos estavam modernamente equipados de modo a proporcionar toda a funcionalidade e conforto aos hóspedes.
Depois de se informarem estar o Centro preparado para servir refeições aos hóspedes e garantir que Cacilda poderia por ali almoçar, Vítor recolheu o dossier com as suas notas e prestou-se a ir ao encontro, antecipadamente acertado para as 13 horas na Grand Place por onde almoçariam numa das esplanadas dos muitos cafés e restaurantes que a povoavam, de René Maigritte.
Cacilda ficava a desfazer as malas enquanto lhe preparavam o almoço, tendo combinado reencontrarem-se por volta das 18 horas. Teriam depois oportunidade de procurar um local romântico onde pudessem jantar apenas os dois já que Vítor fizera questão, aquando da organização da agenda da visita, de reservar a primeira noite só para eles.
O Centre Communitaire de Tournai dispunha de uma viatura com motorista que estava, desde a chegada da comitiva portuguesa, ao seu inteiro dispor.
Maurice, assim se chamava o motorista, um belga de meia-idade dispôs-se a conduzir Vítor até à Grand Place onde René o aguardava. Aí chegados Vítor despediu-se combinando o reencontro para as 17,30 horas para retornar ao Centro e a Cacilda.

Ao entrar na Grand Place, enquanto caminhava calmamente e relanceava o olhar, foi sendo tomado por uma sensação de empolgamento e fascínio que o inebriava. A praça era lindíssima. No centro havia várias fontes bastantes antigas jorrando água permanentemente, via-se o edifício da Câmara Municipal, inúmeros cafés e restaurantes com esplanadas, o "Beffroi" de Tournai ( Torre do Sino) que é o mais antigo da Bélgica e cujos 44 sinos podem ser ouvidos de qualquer ponto da cidade e, mais ao longe, o mais importante ex-libris da cidade : a Catedral de Nossa Senhora de Tournai.
Viam-se (e ouviam-se) ainda alguns músicos por ali a tocar.
Vítor não conhecia René e as referências que levava para o identificar eram apenas as que o próprio lhe transmitira:“estarei sentado junto às fontes do centro, usarei um blusão de bombazina castanho e sou um mulato escuro de olhos verdes. Duvido que, por mais que procures, encontres alguém que corresponda a estes sinais.”
E, de facto, não foi difícil localizar o seu interlocutor. Não parecia esperar ninguém pois o seu olhar não procurava antes estava como que absorto nos seus pensamentos. Vítor a ele se dirigiu, inseguro, no seu francês rudimentar:
- “Bonjour, je suis Vítor du Portugal e j’imagine que vous êtes René Magritte,non?”
- “Olá Vítor, boa tarde. Sim, sou René e aguardava-te. Se te parecer bem poderemos falar em português porque é língua com que estou familiarizado e sinto à vontade.”
- “Verdade?! Pois muito bem. Confesso que não me sinto muito à vontade com o meu francês.”
- “Fiquemo-nos então pelo português. Vamos almoçar? Vens só?”
- “Sim, a minha esposa veio comigo na viagem mas ficou no Centro desfazendo as malas e preparando a nossa instalação. Pedimos que lhe preparassem o almoço por lá.”

Enquanto se dirigiam ao restaurante foram trocando algumas palavras circunstanciais.

Não se conheciam mas, quando os olhares se encontraram no cumprimento de apresentação, Vítor sentiu que havia algo em René que irradiava uma energia que lhe era estranha mas que o impressionou instantaneamente.

Escolhido o restaurante e após consulta da lista, optaram por um bife com batatas fritas já que a cozinha belga é pobre e não prima pela originalidade. Para acompanhar escolheram cerveja já que aí a Bélgica marca pontos em qualidade e variedade. Como o dia estava estupendo preferiram ficar na esplanada donde podiam espraiar o olhar pela Grand Place e sentir o pulsar da cidade.

Vítor tinha preparado bem a “missão de serviço” e queria cumpri-la com esmero e distinção pois que, os resultados a obter, poderiam constituir um trampolim para a sua carreira enquanto técnico municipal ligado à área de Cultura e Relações Institucionais e ainda ao Gabinete de Estudos de História Local da pequena edilidade da margem sul do Tejo onde lançara a sua carreira de funcionário público não fechando as portas à eventualidade de uma carreira política desde que isso lhe possibilitasse galgar etapas no percurso ascendente que a sua ambição exigia. Sabia, por isso, que a antiquíssima cidade de Tournai, para além do seu património construído e histórico que – à imagem da nossa cidade de Évora - a levara a ser classificada pela Unesco como Património da Humanidade, era famosa, na actualidade, pelas suas escavações arqueológicas, pelas tapeçarias da famosa escola flamenga, pelo festival anual de folclore e por uma procissão cuja origem remontava a séculos e que anualmente atraía muitos milhares de pessoas adeptas do turismo religioso. Era ainda referência incontornável nos anais da história da pintura mundial. Numa primeira fase pela escola flamenga e posterior e mais recentemente num género que rapidamente se propagou e criou adeptos e que era classificado como naïf.
Como os dossiers sobre os contornos do acordo de geminação já tinham sido trocados via internet lidos e reflectidos, e após acertarem que o passo seguinte no sentido da consolidação e aprofundamento do intercâmbio entre as duas edilidades passaria pela deslocação de uma comitiva composta por um membro do executivo camarário e representantes das artes e ofícios, da imprensa regional, de um artista plástico e de um escritor, a conversa ao almoço decorreu sobre trivialidades e a história pessoal de cada um. E foi aí, quando as confidências se começaram a estender e os projectos pessoais de vida a revelar, que Vítor entendeu com maior propriedade a impressão profunda que René lhe causara desde o primeiro momento. O clima que se criou entre os dois, em volta daquela mesa fronteira à Grand Place de Tournai, bem se poderia classificar como de encantamento.
“Caro Vítor, quero desde já informá-lo, poderemos tratar-nos por tu,é que tudo fica mais fácil?!
informar-te, que não garanto vir a ser interveniente no desenvolvimento futuro deste protocolo. Não porque não seja interessante e motivador antes porque não sei durante mais quanto tempo me manterei em Tournai, ou mesmo na Bélgica, ou mesmo na Europa. O meu país é a República Democrática do Congo, ex Congo Belga, onde sou descendente da tribo dos Bakongo. Cito o nome da tribo apenas por uma questão de curiosidade pois considero que o tribalismo é um dos problemas a erradicar para que África possa progredir de uma forma sustentada. De qualquer forma e resumindo, a minha mãe, a minha terra, é África e é para lá que eu quero ir pois acredito que tenho lá uma missão a cumprir e que posso, com os conhecimentos entretanto adquiridos, contribuir para a melhoria de vida das populações e, consequentemente, do país. Eu só tenho mãe. O meu pai foi um acaso biológico. O estado belga tem sido “correcto” comigo, talvez como paga do seu passado colonial de que se deve envergonhar, eu sou a herança colonial da Bélgica não sou belga. Mas dizia, o estado belga proporcionou-me a escolaridade e, terminados os estudos, integrou-me numa das suas estruturas onde, se quiser, poderei ter uma carreira, um futuro sem grandes privações, creio. Mas não é isso que eu quero, eu nunca me senti bem por aqui. As minhas mais antigas memórias, registadas ainda apenas no mapa dos sentidos pois que ainda não tinha aprendido as palavras que contam as emoções e o seu significado, impregnam-me daquela sensação instintiva que me permite detectar a proximidade das chuvas pelos cheiros e humidade do ar, ainda que aqui, no ar saturado pelos escapes de tantos automóveis essa percepção premonitória seja menos acentuada e falível.”

Vítor seguia interessado a explanação de René não podendo deixar de registar a alteração do seu olhar claro, verde. Os seus olhos claros, verdes, iluminavam-se tanto que ficavam cheios de nada (ou de tudo). Só luz. Mas o embalo e fluência da voz permitiam identificar e sentir a combustão que lavrava no seu interior. Uma combustão intensa mas calma (não, não é um paradoxo), como que vinda em ondas sucessivas espraiar-se numa areia de praia onde a lua desmaia e se rende no cumprimento do seu desígnio feiticeiro.

«Aqui já quase tudo foi descoberto. Poderá ser mal aplicado e distribuído, mercantilizado, corrompido, mas há todo um percurso civilizacional que foi feito e como tal é do domínio geral o seu conhecimento. Talvez essa consciência, esse caminho já percorrido, seja factor de desesperança nas sociedades europeias. Mas lá, em África, está quase todo por fazer e essa contingência, sendo factor de atraso é simultâneamente semente de esperança. Acabei agora de ler o último romance de Mario Vargas Llosa, o mais recente Prémio Nobel da Literatura e posso dizer-te que alternei entre o fascinado e o horrorizado. É indiscutivelmente uma obra magnifica onde o talento e mestria narrativa do Autor refulge com grande fulgor sobretudo porque é uma tremenda denúncia da ganância e da injustiça que pontua a história, sobretudo a da Europa. Mas não é só uma denúncia do passado, é também uma denúncia do presente. Porque, concordemos (!), tudo prossegue da mesma forma. Com outras nuances, de uma forma aparentemente mais ligeira e humanizada mas no essencial prossegue o saque. Vargas Llosa fez um bom trabalho, provavelmente fez a parte que lhe cabe, mas não chega. É preciso prosseguir o caminho, ir em frente. E ir em frente é, no mínimo, respeitar e permitir a dignidade àquela gente e isso só pode ser conseguido com justiça. A administração da justiça (e de tudo) está a cargo dos mais fortes e quem são os mais fortes ? As perguntas não acabam e as respostas nunca surgem. Bem, talvez que no interior de algumas pessoas, de cada vez mais pessoas , ela se afirme cada vez com maior nitidez e a isso chama-se consciência. Mas a consciência só é válida se servir para mudar comportamentos e atitudes e isso mais não é do que política. Vês alguma mudança sensível na política ? As árvores que simbolizam o martírio e escravização do meu povo servem para embelezar os jardins das grandes cidades, como aqueles exemplares que embelezam a arquitectura do Centro em que estás hospedado. Diferentes histórias, diferentes olhares e percepções.
René suspendeu-se na torrencialidade verbal que nos submergira permitindo que se instalasse, por instantes, algum silêncio. Introspectivos olhávamos, talvez sem ver, a Grand Place enquanto beberricávamos uma aguardente da região.
Passado algum tempo difícil de quantificar, René prosseguiu agora com uma voz onde seria possível identificar algum cansaço mas, ainda assim, uma inflamação contida.

Por isso o meu lugar é lá. Não sei o que vai ser possível fazer e alterar. Tenho algumas ideias, não tenho pressa e, sobretudo, quero participar daquela história. Mas, desculpa, entusiasmei-me e monopolizei a conversa, rico anfitrião que eu sou, conta-me lá coisas tuas, qual a tua vida, quais os teus projectos …

Vítor viajara com e pelas palavras de René. Uma viagem que o transportou ao fundo da história e, também, ao fundo de si mesmo. Também ele lera a obra referida e se sentira revoltado e indignado. Ao saber das origens de René poderia imaginar o efeito que nele teria tido. Mas o que mais incomodava Vítor era a percepção de como o projecto dele divergia do de René nos princípios e nos fins. René perseguia um objectivo respeitando os seus ideais e olhando para o que identificava com os interesses de um povo, Vítor perseguia um objectivo respeitando os seus interesses e perseguindo a satisfação da sua vaidade pessoal. De um lado princípios, do outro interesses. Tal constatação incomodou-o e deixou-o introspectivo, com vontade de se pensar, e foi com pouca vontade e entusiasmo que começou a falar de si.

- “Pois bem, depois de tão apaixonante viagem com as tuas reflexões confesso que o que tenho para dizer é banal e sensaborão. Mais me apetecia continuar no ponto onde me levaste e como tal vou ser muito breve e telegráfico. Sou casado, a minha esposa chama-se Cacilda e curiosamente também provém de África onde nasceu e passou grande parte da juventude, tenho um filho que se chama Artur e que tem apenas 14 meses de idade. Da minha ocupação profissional não vou falar pois já estás ao corrente e quanto a projectos confesso que, depois das tuas considerações, sinto que preciso reflectir melhor acerca deles e do que quero para mim. E agora se não te importas, preciso ir ter com a minha mulher que deve estar farta de estar sozinha. Encontramo-nos amanhã para o programa combinado?”
- “Combinado.”

Quando se despediram e Vítor se encaminhou ao local combinado com Maurice, uma dúvida atormentava René:
“Atendendo a que se tratava de um nome pouco vulgar e à plausibilidade das poucas coordenadas que Vítor lhe traçara, seria possível que a Cacilda “dele” fosse a mesma que o atormentara nos primeiros anos da sua juventude?”
No dia seguinte, quando se encontrassem os três, dissiparia as dúvidas que o ficaram a atormentar.
René Magritte. Vítor Ramalho.
Fechava-se o círculo porque tinha de ser.
Para um, numa decisão pensada e amadurecida pelo lume dos dias, para outro, talvez, possa ter chegado na crista de uma onda que por vezes acompanha o ciclo das marés.
Havia um tempo novo a chegar e, por isso, este teria de terminar.



2º. Capítulo

Estava irremediavelmente arrependido de ter aceite o encargo de servir de cicerone à comitiva que chegava dentro de algumas horas, para assinar o acordo. Mas essa era a história da sua vida: fazer o que não queria!
Lembra-se, com alguma dificuldade, dos seus descuidados primeiros anos de vida, junto às margens do rio Loango, perto da fronteira com Angola. O seu pai, um belga dono de diversas cantinas espalhadas pelos arredores de Cuimba, tinha tanto ódio aos negros como adorava as negras. Só assim se justificava que em todas as lojas, a empregada mais nova e mais escultural ficasse invariavelmente prenhe do garanhão branco. A sua mãe, depois de ter dado à luz, ganhou um estatuto superior que lhe permitia mandá-lo à escola, onde suportava as mais enfadonhas horas da sua vida, ficando sossegado a ouvir uma professora cujo maior dom era a rapidez com que os atingia com a régua ao menor sinal de falta de atenção de algum dos seus alunos. Na escola, aprendeu que a cor da sua pele, mais preta que a de qualquer outro, o obrigava a ser melhor, ter o raciocínio mais acurado, ter mais pontaria nas pedras que atirava, ser mais rápido na fuga a qualquer perseguidor. A sua mãe por ter sido barbarizada e mais tarde marginalizada, foi ficando mais competente na confecção dos inefáveis quitutes, que fazia questão de lhe servir, e ele, por ter de estar sempre em guarda, tornava-se num atleta capaz de competir com miúdos com o dobro da sua idade. Esta evolução não escapou ao, apesar de tudo, orgulhoso pai, que tratou de formalizar a adopção de um miúdo negro, de olhos verdes, com o nome de René Magritte, em homenagem ao pintor surrealista seu conterrâneo, que ele tanto admirava.
Não mandou o seu filho aprender a pintar, mas ordenou ao seu capataz instruí-lo na luta corpo a corpo e no manuseio das armas, as artes que ele considerava mais importantes para os tempos difíceis que sentia estarem a aproximar-se. Rapidamente, o aprendiz suplantou o seu mestre, na arte de disparar e, acima de tudo, na habilidade natural com que seguia um trilho de caça e se colocava no sítio certo para abater a presa. Algumas destas peças de caça, ele fazia questão de as oferecer aos velhos das sanzalas que já não conseguiam garantir a sua sobrevivência. Em troca, ficou a saber truques para iludir os animais, a conhecer ervas que podiam servir de antídoto para qualquer ferimento, ou para curar determinadas doenças; ficou a saber que muitos da sua cor lutavam contra brancos como o seu pai, num combate para ganhar a independência dum país chamado Bélgica, liderados por um tal de Patrice Lumumba.
Ainda hoje não sabe como conseguiu resistir tantas horas debaixo dos cadáveres esquartejados onde permaneceu escondido até a noite tomar conta de mortos e vivos. Ergueu-se cambaleante, agoniado, tendo bem presentes as recomendações da sua mãe, para deixar uma terra que não era, e talvez nunca tivesse sido, a sua. Sem hesitar, por caminhos que ele tão bem conhecia, dirigiu-se para a ponte sobre o rio Loango, onde podia atravessar a fronteira para outro país. Durante os dias de caminhada foram fundamentais os ensinamentos que colheu durante a sua curta mas atribulada existência. O seu instinto de sobrevivência, os seus olhos e os seus ouvidos estavam educados para a ciência de distinguir os mínimos pormenores, como lhe tinha sido ensinado pelos velhos das sanzalas que lhe dedicavam uma admiração e respeito estranhos, se atendermos à sua pouca idade.
Recorda-se do dia em que, aos primeiros clarões da alvorada, viu um grupo de soldados brancos como o seu pai, que caminhavam no trilho, falando em voz baixa numa língua que ele, conhecedor de diversas, nunca tinha ouvido. Ficou imóvel, petrificado, esperando que passassem sem o detectar. Um dos soldados saiu da fila indiana e começou a desabotoar a braguilha do camuflado, para urinar. Ficou a meio, porque encarou com ele e soltou um grito de terror. Viu-se rodeado por um grupo de soldados apontando-lhe espingardas e dizendo coisas que ele não entendia. Um oficial, mais calmo, gritou para o grupo que se calou de imediato e perguntou-lhe:
- Qui êtes-vous?
Não conseguiu explicar de maneira muito convincente quem era, nem o que fazia naquele lugar remoto e, sem contemplações, amarraram-lhe as mãos, puseram-lhe uma mordaça e vendaram-lhe os olhos. Depois de alguns dias de marcha, chegou a uma povoação, que tinha uma tabuleta com o nome de Maquela do Zombo, onde foi interrogado por civis que o ameaçavam com a morte e coisas piores. Sempre que contava a sua aventura começavam a ficar irritados, a bater-lhe, como se quisessem que ele contasse mentiras… Se ao menos ele soubesse quais é que eles queriam ouvir!
Percebeu depois que os soldados estavam deslocados da sua zona de combate e estavam a preparar o regresso à base. Ninguém em Maquela do Zombo quis ficar com ele e, após nova conversa com o comandante do pelotão, iniciou a longa viagem, sem mordaças, nem amarras, para o seu novo destino: Mucaba.


Mucaba, 1966 (foto de A.T.)

Esta vila era constituída por uma rua larga, fábrica de pó vermelho ou de lama, depois das dantescas chuvadas, com casas de comércio e de habitação, rodeada de sanzalas, onde a principal actividade era o cultivo do café. Lá estava aquartelada uma Companhia de Artilharia.
Ficou alojado numa arrecadação junto do refeitório dos soldados. Tomava as refeições com eles e, pouco a pouco, começou a entender algumas palavras e jogar os seus jogos. Distinguia-se pela sua habilidade natural e era pretendido para fazer parte das equipas. Quando a competição era entre os soldados e os locais, as disputas ficavam mais acesas, porque as duas equipas se julgavam com o direito de o ter nas suas fileiras. Foi esse o seu azar!
Chamou a atenção de um dos mais ricos fazendeiros da terra, que pediu ao Comandante de Companhia para tomar conta do jovem, o educar e fazer dele um homem. Foi-lhe concedida a sua guarda, provisoriamente, até que os papéis necessários para a sua adopção ficassem concluídos. Cedo percebeu que o interesse do fazendeiro era explorar a sua capacidade de trabalho. Trabalhava como um escravo na loja que ele tinha aberta, ensaboava, limpava, varria, lustrava, lambia porque tinha reparado que os talheres ganhavam brilho depois de lambidos, friccionava, esfregava, polia, ia entregar mercadoria a qualquer hora do dia ou da noite e, para cúmulo, tinha de tomar conta da filha do seu patrão, Cacilda, uma rapariga da sua idade, gorda, estúpida como uma galinha sem cabeça, e com um libido só comparado a uma leoa com cio. Seguia-o por todo o lado sempre a querer tirar partido do seu membro viril em erecção não permitindo desculpas de nenhuma espécie, quando ele, já saciado de tantas brincadeiras, tentava negar-lhe aquilo de que ela, pelos vistos, nunca se fartava!
Só tinha algum descanso quando no dia da sua folga, visitava o seu amigo Virula, um fazendeiro branco, com um corpo que fazia lembrar uma saca de café com pernas, que vivia na sua fazenda a duas horas de distância, por uma picada impraticável para todos os veículos com excepção do Unimog da Companhia e da carrinha do fazendeiro, que já conhecia de cor os buracos de que tinha de se desviar.
Na história dessa amizade estava retratada a natureza humana no seu pior: a tendência para abusar dos mais fracos. Virula ia abastecer-se a Mucaba, levando consigo trabalhadores da fazenda e alguns dos seus filhos e filhas que aproveitavam, também, para fazerem as suas compras. Uma das filhas mais velhas dirigiu-se à loja do outro lado da rua para comprar um tecido de capulana, quando um soldado a chama e a agarra arrastando-a para um beco. Os seus gritos desesperados foram abafados pela mão do soldado, mas os ouvidos do jovem René captaram o pedido de socorro. Com o seu passo felino aproximou-se e deixou o soldado estendido no chão a contorcer-se com dores no exacto sítio em que mais doía. Foi tanta a vergonha do soldado por se ter deixado vencer por uma criança, que o caso ficou por ali. Na semana seguinte, Virula falou com o patrão de René, deixando-o boquiaberto, quando agradeceu os relevantes serviços prestados pelo seu moleque e informando-o que o convidava para a sua fazenda sempre que fosse de sua vontade.
Nas visitas regulares que começou a fazer, levava consigo uma grade de cerveja Cuca, pois já sabia que o amigo lhe pediria para ir caçar um animal para fazer um petisco. E era fácil! A rodear a casa estava a plantação de café e a floresta, abrigo de toda a espécie de animais. Uma vez, teve de abater uma jibóia agressiva que serviu para fazer uma canja e uns grelhados mistos deliciosos. Depois de comer e ouvir as histórias incríveis do seu amigo, que ficava sonoramente a dormir na sua cama de rede, passava o resto do tempo a brincar com os dez ou quinze filhos das duas mulheres negras que viviam na fazenda. Eram os momentos mais preciosos dos seus dias, aqueles em brincava com os meninos da sua idade, irmãos de cor, irmãos de verdade.
A separação da anafada ninfomaníaca chegou-lhe na forma de um pedido de extradição para a Bélgica. O irmão do seu pai tinha conseguido seguir o seu rasto e reclamava a custódia do seu sobrinho, como o parente vivo mais próximo.
Foi difícil a sua adaptação à vida da cidade. Precisava dos grandes espaços para se sentir livre, sofria com a falta dos amigos, não gostava de aprender pelos livros aquilo que estava habituado a ouvir da boca dos mais velhos e sábios. Entrou para a universidade, valendo-se dos seus dotes físicos muito acima da média e do seu dom natural para as línguas. Depois de se formar, encontrou com facilidade um lugar no município de Tournai, a mais antiga
cidade da Bélgica, dotada de uma grande riqueza arqueológica, que já no século primeiro era um importante centro administrativo e militar do Império Romano. Era nesta denominada cidade das artes, património da Unesco, que ele tinha por missão negociar o pacto de geminação com uma Vila de Portugal, de que nem sequer se lembrava o nome!
O círculo estava a fechar-se…


1º. Capítulo

O que nunca poderia imaginar era o que o esperava à saída daquele avião.
Tanto quanto a memória lhe permitia recuar, sempre ele se tivera na mais elevada conta. Desde os tempos em que a Professora Quitéria, ponteiro em punho, lhes fazia ver que a determinado som correspondia uma dada imagem e que isso se traduzia em certos símbolos que, uma vez reunidos, formavam palavras, logo aí ele percebera que nenhum daqueles outros miúdos era mais capaz que ele, fosse nesse domínio das letras, fosse na lógica dos números em que via mistérios com que gostava de brincar, nem mesmo aqueles mais felizardos que viviam sem que o frio entrasse pelas gretas das portas e janelas e no caso daquela miúda que muito o irritava pelos modos e juízos que punha em tudo, ou do Arturinho cujo pai era rico e culto, iam ao ponto de terem livros e televisão em casa e qualquer coisa que necessitassem, como que por encanto, geralmente aparecia no dia seguinte. Ora ele não precisava daquelas máquinas de calcular de bolso que os colegas invejavam, para efectuar por cálculo mental as contas mais difíceis e para descobrir a demora de um tanque em encher, sabendo as respectivas medidas e o volume líquido que da torneira jorrava por cada segundo. Como em certa ocasião disse a um conhecido, “-Posso ficar sem trabalho, mas cada vez tenho mais consideração por mim.”
Mas este desabafo teve lugar muitos anos depois daqueles bancos da escola em que se sentava de calções quando as tardes aqueciam e calças compridas com as joelheiras que detestava, no Inverno. Era então um moço que por empurrão paterno e em face de resultados escolares banais e que, na perspectiva de um futuro ganha-pão, nada auguravam de relevante e até porque, preguiçoso como se mostrava, não havia quem dele pudesse esperar um empenho que por essa viesse a alterar o destino antevisto, lá tinha ele aceite a condição de aprendiz junto de um electricista que vivia de empreitadas para a construção civil. Cedo se fartou de ser burro de carga para tudo e de passar os dias a obedecer a mandos e recados deste e daquele, quando na verdade no que ele se via era muito simplesmente a desenhar as redes e a explicar aos outros como deveriam abrir os roços onde depois colocariam aqueles tubos anelados em que haveriam de passar os fios da instalação. E numa boa tarde em que a aselhice do encarregado geral o obrigou a subir em vão a escadaria de andaime de um quarto andar em tosco, por se recusar a pedir desculpa ao mais velho a quem chamara estúpido, não hesitou em virar as costas ao patrão perante as alternativas que este lhe colocava.
Que outra atitude poderia ele ter tomado? Foi a pergunta que devolveu à mãe quando esta o inquiriu sobre o sucedido. Ser filho de trolha alcoviteiro e crescer a peixe frito e sem doces nem a distinção de gravata bem camisada, ver os da sua idade saírem para ir aqui e ali, com dinheiro no bolso, planos na cabeça e sorrisos nos lábios, ou ser o último recurso dos bailaricos para as miúdas que iam vendo os desejados rumarem a outros rostos, tudo isso eram as fatalidades com que tivera que lidar, ainda mais ele que não sendo bonito, nada tinha que o distinguisse entre aqueles com quem convivia. Contudo, não era por aí que resolvia as dúvidas quanto à sua culpa por ter nascido de pais assim e como à medida que o buço lhe foi despontando ele se foi isentando de uma tal responsabilidade, nenhuma das refregas com que a vida lhe atirou a gaiatice à cara foi capaz de o demover da sua auto-estima que, na adolescência e à mistura com certo sentimento de vitimização, evoluiu para um profundo sentido de consciência das injustiças que aos mais pobres impediam os degraus de acesso a dias melhores. E foi isso que, de emprego em emprego, o levou a concluir os estudos do ensino secundário. Chegaria a hora em que todas aquelas que insistentemente não riam das suas chalaças e raramente o deixavam sem estar a falar só, todos os que nele viam nada mais que um Zé Ninguém, todos haveriam de ser confrontados um dia com a obrigação de lhe tirarem o chapéu.
Só que essa oportunidade jamais aconteceu. Em contrapartida, dessas noites em que após os afazeres que se foram seguindo uns aos outros ao sabor do tédio e do cansaço com os mesmos, amiúde mais sonolento que dado à vontade de ouvir, ele se sentava naquelas cadeiras ridículas para aprender as lengalengas das várias disciplinas, de todo esse esforço ficou-lhe o gosto pela História e a Arqueologia que o haveria de acompanhar para o resto da vida. E como se isso não tivesse vindo a ser de especial importância no seu percurso, também aí, finalmente, ele encontrou o amor.
Cacilda era grande e, sob aquelas blusas e camisolas invariavelmente largas e combinadas com saias até aos tornozelos, toda ela chocalhava com as suas graças, ou então só não se derretia, porque a atenção que dispensava às suas palavras implicava que ali estivesse, em corpo, com os olhos brilhando na exacta direcção dos seus. Fora a primeira moça que aceitara conversar com ele sem outro intuito que o mero dar à língua, da mesma forma que fora dela o primeiro sim para uma companhia de cinema e quando numa manhã de beira-mar lhe disse que aqueles braços feitos remos de cabeça à tona de água eram um nadar muito bem, sequer sem o mais leve remoque interior, ele ficou a saber que a amava. Cabendo no balandrau carnudo do seu amplexo, quase se empoleirava para a abraçar e lhe acariciar as costas até à coluna, mas não foi isso que os demoveu e depois de ela o ter mexido e remexido e dele ter feito um homem, foi com toda a naturalidade que decidiram casar.
Por essa altura já ia no terceiro ano consecutivo em que ganhava os verões pela animação de campos arqueológicos de tempos livres em que, de acordo com os relatos em que se impunha à tutela, fazia importantíssimas descobertas de cacos e outras provas de actividades económicas de antanho e extintas e completava os invernos com avenças várias que lhe possibilitavam a compilação daqueles dados e a produção de artigos para a imprensa local nos quais apresentava e defendia teorias e mais teorias sobre a pretérita importância económica do burgo. Foi o patamar das convicções que cirurgicamente deixava cair nos ouvidos certos e na sequência de uma notícia em que o jornal da terra lhe acrescentou ao nome o título de arqueólogo, nada fez para que a incerteza deixasse de dar a entender que a nomeação muito naturalmente decorria de uma formação académica que, de facto, não possuía, mas foi por via disso veio a subir à posição de técnico camarário responsável pelos assuntos culturais.
Era o bom porto após uma acumulação de expedientes que afinal tanto o inquietavam e o faziam protestar quando certas vozes se erguiam e a concordar sem demora, impreterivelmente segundo a regra da razão que a todos os mandantes e influentes assiste. Provavelmente por causa dos alívios e da confiança acrescida perante o vindouro, gozou a satisfação de saber que a Cacilda estava grávida e mais tarde gostou sinceramente de se ver como pai. Foram pois dias de Sol, a criança medrava sob os cuidados e carinhos da mãe, o salário engrossara significativamente e com a queda do muro de Berlim descobriu-se democrata e gabou publicamente a sua própria coragem para trocar o seu quadrante político de sempre pouco antes da alteração eleitoral que aos seus representes arredou do poder autárquico.
“-Pois é, até posso não ter grandes amigos, mas nunca na minha vida perdi uma oportunidade.” –Respondeu a um antigo correligionário que, numa converseta de café, lhe pôs os dedos no nariz.
Terá sido esse o sentido com que se fez nomear para o cargo de uma associação de amizade com uma cidade belga que estabelecera um pacto de geminação com a Vila onde nascera e obviamente a chefiar a delegação que, a convite, ali se dirigiu para assinar o acordo.
Só por isso subiu para o avião que o levaria ao encontro daquilo que nem a sua prodigiosa imaginação seria capaz de antever.