domingo, 29 de janeiro de 2012

Capítulo 7

Um casal em forma de Península Ibérica

 Cacilda boquiaberta olhava para aquela luz imensa que brotava por todo o lado. Meu Deus, donde viria tanto ouro. Eis, que num ápice, milagre dos milagres, podia estar aqui a solução para a crise económica do país. Os pensamentos voaram até René Magrite e perante tanta riqueza pensou que poderia com facilidade realizar o almejado sonho de levar os “touros de morte” até ao Congo Belga. Mas Deus não quis. E se depressa o enigmático tesouro foi revelado, mais depressa o mandou de novo tapar. De súbito a viga central que suportava o tecto subterrâneo partiu e a derrocada que seguiu acabaria por tapar a saída para o exterior. Vítor e Cacilda ficaram fechados nos subterrâneos. Mas como um azar nunca vem só, uma pedra bem apontada e disparada embateu com estrondo na cabeça do Vítor que desde então não mais se chamou Ramalho. Passou a chamar-se, simplesmente, de Vítor Alho. A parte da Rama perdera-se definitivamente. De maneira inversa, a árvore mistério nunca mais deu alhos e, doravante, só passou a dar ramos. Continuou sempre sem tronco e sem folhas, e agora também sem alhos, mas continuou a dar ramos, muitos ramos, e por isso o mistério perdurou.

Bem, então o cenário que se nos oferece, a nós e ao leitor, é de uma cave subterrânea extensa, do tamanho de meio campo de futebol, cheia de pepitas de ouro, pedras e areias amontoadas como resultado da súbita eclosão e deitados no chão o Vítor Alho que, sem dar sinal de si, da cabeça sangrava e a Cacilda que em absoluto pânico chorava. Desalmadamente, chorava. O que fazer, perguntava eu, escritor, pela cabeça de Cacilda? Como continuar uma estória que aparentemente desabara. Sem saída para o exterior a estória não tinha mais saída. “Que fazer?”, perguntou de novo. E, de repente, acendeu-se a luz. Não a do subterrâneo, mas a dos pensamentos. Vou anexar uma fotografia.


Eis que, afinal, o chão do subterrâneo espelhava a luz do sol. Renascia a esperança, havia uma saída. O problema é que o orifício que dava entrada à luz não permitia a saída de um corpo. A abertura revelava-se demasiadamente estreita. Mas podia gritar-se. Gritar-se o mais que podia na esperança que alguém ouvisse. E Cacilda assim o fez.  Começou a gritar. Não conseguia saber do resultado do esforço, e isso naturalmente que a deixava desesperadamente ansiosa, mas gritava. E gritou outra vez, e mais uma vez gritou. Ficou rouca. E nada. A sorte não se fez anunciar e Vítor Alho continuava a sangrar.

Sentiu-se desolada e derrotada. Sentou-se no chão e acariciou o rosto de Vítor e, claro que, como sempre acontecia lhe cheirou a alho. Ficou com a mão em sangue e lambeu-lhe o sangue. No desconforto dele sentiu o seu próprio desconforto. A fome, a sede e o frio foram-se instalando, a pouco e pouco. E, depois, aquele forte cheiro a bafio, a humidade dos lugares escuros e ermos, o tremendo medo que houvesse ratos, osgas, morcegos. Começou a cobrir-se com pepitas de ouro. A si e ao seu Vítor. E eram as pepitas de ouro que a alimentavam e defendiam, tal como eram elas que iam evitando que a alma de Vítor se esvaísse. Era verdade, a energia do ouro fazia milagres. Mas estranho cenário, o súbito encontro com a riqueza, o imenso brilho do ouro, afinal acabara por atrair a desgraça. Triste sina. Percebia agora com muita nitidez porque se falava tanto nos “diamantes de sangue”. A ganância de uns acabaria por dar sempre no prejuízo de outros. Mas, esperança acesa, cá se fazem, cá se pagam.

A noite instalou-se. Tanto foram as pepitas de ouro empilhadas que acabou por ficar com uma razoável mancha de céu como horizonte de sonhos. Todavia, escura, muito escura. Acabou por fechar os olhos e no meio daquele terror de silêncio ouvia o imponente respirar da noite, e acabou por se deixar de dormir por tanto sonhar em pesadelos. E nem dormia, nem sonhava. Agoniava. Lentamente agoniava no meio do pétrido sepulcro. Os terríveis espíritos das trevas invadiam-lhe as entranhas. E ao abrir os olhos acrescentavam-se aqueles enigmáticos pássaros de fogo como um sinal incompreensível que o céu enviava. 


Entretanto, haveria de se fazer dia. Outra coisa não seria de esperar. Mas antes de continuar a estória permitam-me um pequenino desabafo. “FODA-SE, SÓ AQUELES GAJOS É QUE ME FAZIAM PASSAR UMA TARDE DE SÁBADO A ESCREVER UMA HISTÓRIA COMO ESTA”. Mas, pronto, como é com amizade e carinho, adiante. Em prole do futuro, dos nossos filhos, e desta incrivelmente surpreendente humanidade, adiante. Só por isso não me importarei de cá vir outra vez. Mas se acaso tiver de vibrar na paz dos anjos, ilhas de amores, decerto que adianto. Assim seja!

Deixem-me sonhar, diria o José Torres. 
(É verdade que os leitores mais jovens e estrangeiros não perceberão nada do que se acabou de dizer, mas basta passar á frente porque a interjeição não é para explicar.)

E, pronto, agora vai ser em forma de resumo que é para não maçar mais. O Vítor Alho e a Cacilda acabaram por ser salvos dos escombros. As obras de restauração do Palacete da Quinta da Fonte da Prata acabaram por dar à luz dois corpos poeirentos, pálidos, magricelas, salvos pelo brilho do ouro e dos pássaros de fogo que não mais os abandonaram. O Vítor Alho, "temos pena" como diz a minha vizinha, nunca mais recuperou do acidente. Perdeu grande parte da memória, estranhava-se a si próprio, não reconhecia a Cacilda como sua esposa, renunciou a viver com ela, reformou-se e arrastou-se pela vida, até ao anunciado fim. Igualmente, os “touros de morte” varreram-se definitivamente. Entretanto, René Magrite, consternado, veio de visita. O Vítor não o reconheceria. Tão triste ficara René. Mas não se perdeu tudo. São tantas e misteriosas as voltas que a vida dá que acabou por se apaixonar por Cacilda. Tudo aconteceu quando Cacilda o convidou para irem juntos ver um jovem cantor, sevilhano, que tocava “Flamengo”. E eis que no meio de um ardente desejo que só a música trás, puxou dos lábios dele e entornou-os violentamente contra os seus. E agora René Magrite, ficas por cá, regressas à Bélgica, ou matas definitivamente as saudades e retornas ao Congo Belga?

Entretanto, eia a música que produz milagres e que juntou definitivamente o amoroso par como se da Península Ibérica inteira se tratasse:


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