terça-feira, 14 de dezembro de 2010

CATÁSTROFE (Livro Coletivo I)

CAPÍTULO I
O OVO
Era um ovo diferente de todos os outros.
Tinha uma coloração cor de carne, suficientemente extraordinária para lhe chamar a atenção, mas o mais relevante eram as pintas que decoravam a sua superfície. Eva pegou no ovo, com os cuidados com que se pega numa criança, e ficou a olhar para ele, rolando-o entre as mãos, para apreciar a sua beleza. Ficou absorta olhando sem ver, como fazemos, muitas vezes, quando queremos esquecer as amarguras da vida, mas o seu cérebro chamava-lhe insistentemente a atenção para a realidade que estava nas suas mãos, diante dos seus olhos. As manchas tinham um padrão! A pouco e pouco, começou a tomar consciência do que estava a ver. As manchas não eram manchas…
Todo o seu corpo começou a receber uma descarga de adrenalina que a lançou numa corrida frenética de regresso a casa, não sem antes, com mil cuidados, colocar o ovo entre os seus seios, para não se partir.
Diante da fotografia, já desfocada pelas lágrimas que nasciam dos seus olhos, ficou com a certeza do que tinha tido dificuldade em admitir: as pintas do ovo eram a cópia fiel das sardas do seu querido, único e falecido filho, Abel.
Reviveu, mais uma vez, com angústia crescente o drama do seu desaparecimento numa noite, aparentemente igual a tantas outras, em que ele foi à pesca com o grupo habitual de amigos. Devido ao mar forte, que os impedia de pescar na praia, tinham resolvido experimentar um pesqueiro de rocha na Serra da Arrábida, protegido do vento, rico em peixes, também eles a procurarem abrigo. Ao raiar da manhã, notaram o desaparecimento de Abel. Passou quase um ano sobre o infausto acontecimento, sem que ninguém encontrasse qualquer explicação para o mistério que tem assombrado o espírito da Doutora Eva. E agora este reavivar do seu desgosto lancinante, da maneira mais inesperada e cruel!
Sentou-se na sua cadeira de pensar, procurando acalmar as batidas frenéticas do seu coração. O que fazer? A pouco e pouco, à medida que os batimentos diminuíam, aumentava a certeza da sua decisão. Iria incubar aquele ovo nos seus seios! O período de incubação seria de vinte e um dias, exactamente as férias que tinha para gozar no Instituto de Biologia, onde trabalhava. Logo pensaria na desculpa para apresentar ao director do laboratório, Professor Hikyll.
O seu treinado cérebro de cientista começou, desde logo, a traçar os planos para levar a cabo o seu projecto, limitando as hipóteses de tudo resultar num fiasco.
Coseu no soutien um pedaço de tecido que retirou do blusão que costumava levar para as férias na neve, protegido na parte de fora por uma concha marinha, que tinha o formato do ovo. Se naquela concha tinha vivido um molusco, pensou, também poderia ser o receptáculo apropriado para proteger o nascimento de outra espécie mais desenvolvida. Garantida a temperatura ideal, próxima dos 39 graus e protegido contra choques ocasionais, faltava preparar os mantimentos necessários para permanecer em casa durante as próximas três semanas.
Imersa nestes pensamentos, de repente, um largo sorriso rasgou-lhe a face. Pessoa, que era apenas um homem, escreveu com setenta e dois nomes diferentes. Deus tem muito mais nomes para assinar, um deles é o acaso, que ditou esta incrível coincidência: dentro de três semanas fazia um ano que o seu filho desaparecera da face da terra, para entrar no oceano primordial em que teve início a vida no nosso planeta. Começaria de imediato a chocar o ovo, para que o seu filho renascesse, simbolicamente, não das suas próprias cinzas, como uma Fénix, mas dum invulgar ovo de galinha.
A sua preparação académica e profissional ajudaram-na a manter a temperatura ideal durante o período da incubação. Serviu também para se preparar para os primeiros dias em que procurou conhecer o tratamento indicado para um recém-nascido.
Ficou a saber que desde a eclosão, o pinto debica estímulos visuais de acordo com a combinação da cor, do tamanho, e da forma. É notória a sua preferência pelo azul e o encarnado, em objectos pequenos e esféricos, semelhantes aos grãos que serão a base da sua alimentação. Estudou outros pormenores até se considerar apta para o grande momento.
Tinha a certeza de estar preparada, mas enganou-se redondamente! Quando chegou o dia, a primeira bicada do pinto a eclodir, soou-lhe como um morteiro lançado inesperadamente por altura das festas populares! O seu coração explodiu como o mais puro dinamite!
Retirou o ovo nervosamente do soutien e pousou-o num cesto que tinha preparado para o efeito. E ficou a ver o milagre do nascimento: as tentativas do pinto para furar a membrana exterior, a sua luta desesperada para quebrar a casca com o frágil bico.
O pinto saiu do seu invólucro de vida caindo na cama, exausto. Eva estava arquejante. Olhava embevecida para ele, num tropel de sentimentos à desfilada.
Na semana seguinte ao nascimento, regressou ao trabalho. Nesse primeiro dia não conseguia concentrar-se, porque não lhe saía do pensamento as gracinhas que o seu menino fazia. Era capaz de jurar, que sempre que regressava a casa, ele manifestava a sua alegria batendo as asas vigorosamente e pipilando até que ela lhe pegasse e o aconchegasse no peito.
Com o decorrer das semanas, fortalecia-se a sua convicção de que aquele frango era especial. Lembrava uma ocasião em que estava curvada a encher o prato com o milho de que ele mais gostava, de ouvir o bater das suas asas e de o sentir nas suas costas, a debicar no lóbulo da sua orelha, carinhosamente, como o seu filho lhe fazia. Ficou arrepiada, só de ter esses pensamentos!
Numa outra vez, num calmo final de tarde, sentada na sua cadeira favorita, ao olhar o frango que perseguia os insectos que pululavam no jardim, com os raios de sol a baterem na sua plumagem e crista, ficou atónita porque viu com nitidez os cabelos soltos de Abel, a brincar com a sua bola.
Mas o que a deixou completamente estarrecida foi a constatação que o galo, logo que o sol começava no seu ocaso, se dirigia para a garagem e voava para o seu poleiro: a cana de pesca preferida do seu filho! Aquela, em fibra de carbono, da mesma marca do carreto, Mitchell. Gostava tanto de lá estar, que durante o dia passava por lá, baloiçando-se, orgulhoso do seu poleiro.
O que Eva não sabia é que estes eventos seriam apenas o princípio, a explosão do ovo cósmico, um big bang de acontecimentos absolutamente inesperados e imprevisíveis.

CAPÍTULO II
Tempo de Lutar, Tempo de Amar

Eva, no estado de torpor em que se encontrava languidamente estendida na sua cadeira de pensar, numa tarde de sábado que morria docemente, sentia desvanecer, lenta e gradualmente, o som do bater de asas do galo, a procurar o equilíbrio possível na cana de pesca , enquanto que outro som ia crescendo de volume, um som metálico que de tão familiar, se tornava cada vez mais macio, diluindo-se nos outros ruídos do dia-a-dia, som de um instrumento da orquestra em actuação permanente da sua vida…
Abriu lentamente os olhos e viu à sua frente Adão, seu companheiro, que dava ao filho de ambos, Caim, conselhos redobrados de manuseamento da Kalash: segurança, rajada e tiro-a-tiro. Os dois, apercebendo-se de que ela tinha acordado, disseram em uníssono: “Eva, Mãe, já acordaste?” E agora, Adão: “Querida, estávamos a falar tão baixo quanto possível, pois não te queríamos acordar, já que dormias com um maravilhoso sorriso no rosto…” Ela respondeu apenas com um outro enorme sorriso do tamanho do mundo, mostrando os dentes brancos e os olhos cheios de rios e barcos. De imediato, ao olhar para o seu filho, Caim, virou a cara para o lado, de forma a não mostrar o ar introspectivo com que ficou, lembrando-se que no sonho apenas tinha tido um único filho, Abel. E recriminou-se por isso. Tão estranho… mas ao mesmo tempo, tão doce sonho!...

Desde que tinham passado à clandestinidade, opção de ambos, após terem chegado à conclusão de que a Corrupção, a Usurpação de Poderes e todos os tráficos possíveis no seu País, tinham minado todo e qualquer meio de combate político pacífico ((e conscientes de que arrastavam também dois filhos jovens, que no entanto (mostrando uma clarividência e determinação pouco usuais nas suas idades) manifestaram desde o início a sua vontade de os acompanhar na perseguição de um sonho de Liberdade e Bem-Estar para o seu povo, sacrificado, espezinhado desde os primórdios, usado e abusado, nada mais restando a quem tivesse um pingo de vergonha, dignidade e solidariedade para com os seus compatriotas, senão a opção tomada)), tinham-se transformado em proscritos, em alguém que não pode sequer por breves momentos descurar a atenção e vigilância. Adão dormia pouco, muito pouco, muitas vezes dormitava de pé com a Kalash nas mãos, encostado à entrada da gruta algures na Arrábida, mas adorava observar a sua companheira sorrindo a dormir. Protegia-a como podia e sabia, mais ainda após a trágica morte do segundo filho, Abel, vítima de uma emboscada montada pelo exército dos Tiranos, quando passavam os dois irmãos por um dos trilhos da Serra. Nunca tinham (nem Adão, nem os seus camaradas de luta, foragidos e espalhados por outros pontos da Serra) entendido as razões pelas quais estariam ali militares do Estado Tirano, depois da zona ter sido “varrida” quase palmo a palmo algumas horas antes. Caim voltara à gruta, informando os seus pais de que o irmão tombara, pedindo ajuda a seu pai para o resgate. Mas, misteriosamente, quando lá chegaram, não encontraram o corpo – durante horas revolveram arbustos, passaram a pente fino toda a área, mas nem o mais ténue sinal de Abel. Finalmente, cansado e desesperado, Adão regressou à gruta com a triste notícia para Eva: o (corpo do) seu filho tinha desaparecido.

Eva não chorou, não fez luto; durante semanas, todas as manhãs perguntava a Adão com os seus olhos de rios e barcos: ”Por onde andará? Porque tarda a voltar?” Adão abraçava-a com força e sussurrava-lhe ao ouvido: “Ele sabe tomar conta de si, quando chegar a altura, ele voltará…” Eva não lhe podia ver agora os olhos, mas eram de cinza, de carvão apagado, os músculos dos seus braços retesavam-se, apertando cada vez com mais força a sua companheira. Um dia, Eva deixou de perguntar… Limitava-se a olhar para o trilho por onde tinham partido os dois irmãos… após alguns minutos, voltava para o computador portátil, revendo os textos que seriam enviados para o Servidor do Movimento, alojado num país neutro, a fim de serem distribuídos na Rede.
Eva recordava os tempos em que era Bióloga, o seu ternurento e excêntrico director, o Professor Hikyll e havia alturas em que se questionava se tudo tinha valido a pena. Mas de imediato olhava para o pequeno quadro que tinha pendurado na parede da gruta, com o seu poema preferido de Pessoa: “…Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena… Quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor...”, fechava os olhos e uma tranquilidade lhe inundava o corpo e a alma. Outros dias havia em que lhe vinham à memória (espontaneamente, sem que fizesse questão nisso ou muito menos tivesse prazer de o lembrar) as constantes disputas entre os seus filhos – quem chegava mais depressa à Rocha Inclinada, quem atirava uma pedra mais longe, quem conseguia encher mais depressa o carregador da Kalash… Lembrava-se bem que na maioria das vezes, Abel era mais rápido, embora sendo o mais novo e a constatação desse facto irritava Caim ao ponto de começar a praguejar contra o irmão, acusando-o de fazer batota e chamando a atenção dos pais, o que levava não raramente à sua intervenção para pôr cobro à discussão. Eva recordava as vezes em que, chamando de parte o seu filho Caim, lhe tentava fazer compreender que, para se ser bom não tem que ser-se necessariamente o melhor e ele não precisaria nunca de demonstrar a sua superioridade face ao irmão para ter o amor, respeito e consideração, quer dos pais, quer dos restantes combatentes que se iam juntando à luta e à clandestinidade. Mas a obsessão superava a razão e, para sua preocupação, Eva continuava a assistir, impotente, à necessidade de afirmação (e frustração, quando o não conseguia) do seu filho mais velho, Caim. Sempre amara os dois filhos por igual, o desaparecimento do mais novo (que ela teimava em não aceitar como tendo falecido) não transferiu a torrente de carinho de um para o outro: continuou a amar Caim como sempre, assim como dedicava o mesmo amor a Abel, ou, se se quiser, convertendo na mesma medida a tristeza pela sua ausência. As frustrações de Caim tinham acabado, é certo, mas (e também por essa razão) Eva, conscientemente, nunca o quis transformar em novo-filho-único, mimando-o em excesso ou sendo demasiadamente tolerante em relação a hábitos e atitudes de menos correcção. Em certas alturas, Eva era visitada por temores e pensamentos terríveis que de imediato afastava com todas as suas forças, tentando não transparecer na presença do seu companheiro nada do que estava a sentir, admoestando-se a si própria por ser capaz de tais pensamentos. E dos ditos não me alongarei mais, certo de que o leitor já por certo se terá apercebido da ideia subjacente às minhas palavras, conhecendo ou não o Antigo Testamento.

Um dia, Adão chegou de uma Operação, visivelmente transtornado, Eva pareceu ver-lhe lágrimas nos olhos e perguntou: “O que aconteceu, porque estás assim, morreu algum dos nossos?” Ele respondeu-lhe: “Dos nossos ninguém morreu, tão pouco dos deles… mas eu quase que matei um soldado, muito novo, um rapaz, pouco mais que uma criança… Ainda bem que a visibilidade era boa e pude fazer pontaria para onde queria… Não me perguntes porque me arrisquei tanto, ao tentar apenas neutralizá-lo, ferindo-o sem gravidade, pois não te sei responder. Ainda assim, quis evitar magoá-lo, mas não pude – era ele ferido ou eu morto – apontou-me a espingarda e ia disparar; atirei-lhe para o braço cuja mão tinha o dedo encostado ao gatilho… de imediato deixou cair a arma, esta que trago ao ombro, quando o vi de joelhos no chão, com cara de menino, a chorar como só uma criança o sabe fazer, senti um nó na garganta… é assim a guerra, quem me dera que fosse o Presidente da República, ou o Primeiro-Ministro, o Ministro da Defesa ou qualquer outro Ministro, ou um banqueiro, um deputado ou qualquer outro parasita do País, quem estivesse dentro daquela farda a apontar-me a arma”, teria sem hesitação atirado a matar… mas quando vi aquele garoto, aquela cara sardenta… “Deixaste-o ir embora?”, perguntou de imediato Eva, “Sim, respondeu Adão, “não sem antes lhe dizer estas palavras: Rapaz, tens consciência do que andas a fazer? Sabes que o exército em que militas serve para o Poder Tirano reprimir, oprimir, destruir, condenando à fome o Povo? Que serve para invadir países que nunca nos ameaçaram, nunca nos fizeram mal, semeando a destruição e morte das populações, apenas em nome da ganância de uma minoria de ricos que não têm outro objectivo na vida senão o de ficarem cada vez mais ricos à custa da miséria de muitos mais, apoderando-se de todos os meios de produção e subsistência, escravizando milhões cuja única culpa é a de terem nascido?” “E ele respondeu?” perguntou Eva, com a voz a tremer e os olhos de rios em enchente . “Arregalou os olhos, como uma criança que começa a ver pela primeira vez e tenta perceber o mundo que a rodeia e perguntou-me: vai matar-me? Olhei para ele como um pai que olha para um filho que cometeu uma travessura, tentando disfarçar com um olhar austero o coração que se ia derretendo naquelas sardas do seu rosto e perguntei-lhe de novo: em que estás a pensar? E ele respondeu-me: na minha casa, na minha mulher que teve agora um bebé, é um rapaz, ela diz que é a minha cara, tem sardas iguais às minhas, pusemos-lhe o nome de Abel; nos meus pais que devem estar muito preocupados pelo facto de há dias não dar notícias; no meu cão, “Ardent”, fiel amigo; estou a pensar que nunca mais os verei.” “O teu filho chama-se Abel… tens alguém na família com esse nome?” “Não, aconteceu por acaso”, respondeu o rapaz. “Um dia, eu e a minha mulher, estando ela grávida, caminhávamos pela praia junto ao mar e vimos na areia molhada escrito esse nome. Não estava ninguém por perto, não conseguimos entender porque razão o nome apareceu à nossa frente, momentos depois veio uma onda e a palavra desapareceu. Naquele momento, aparentemente, esse facto não teve importância, mas, na manhã seguinte quando acordámos, eu disse para ela: tenho um nome para o nosso filho; e ela respondeu: eu sei, é Abel. E Abel ficou.” “Rapaz, disse-lhe eu, hoje é o teu dia de sorte, fui eu que te apareci ao caminho, qualquer outro dos meus camaradas de armas com quem te tivesses encontrado te teria morto ou ferido com gravidade, é o mais provável, assim como provável será que o Destino nos tivesse juntado hoje. Será? Vai-te embora e quando estiveres em casa, na companhia da tua família, lembra-te do que te acabei de dizer. Nunca te esqueças que nós, os foragidos, apenas o somos porque é essa a nossa Missão… ou Destino, se lhe quiseres chamar. Somos guerrilheiros porque um dia chegámos à conclusão que alguma coisa teria que ser feita para bem de todos nós, para garantirmos um presente digno e um futuro de esperança para os filhos dos filhos dos nossos filhos. Agora vai… Levantou-se e partiu. Fiquei a vê-lo, por momentos, a afastar-se. Passou por uns arbustos mais altos, contornou uma rocha e desapareceu. Havia qualquer coisa de familiar nele, mas não consigo perceber o quê, não sei se alguma vez o conheci ou me cruzei com ele, mas sei que nunca o esquecerei, disso tenho a certeza…”. Eva olhava o seu companheiro com aqueles olhos enormes de rios e barcos, perscrutando algo no brilho dos olhos dele, ansiosa, trémula, incapaz de esperar… “Quando finalmente deixei de fixar o sítio onde o vi pela última vez, contornando a rocha e me decidi a voltar, olhei distraidamente para o chão e, para meu espanto, vejo um estranho ovo, pintalgado, no preciso local onde o rapaz tinha estado ajoelhado…” “O sonho!, gritou Eva, o sonho!” “ Que sonho?, perguntou Adão.” “Adão, o que fizeste ao ovo?, perguntou Eva.” “Tenho-o aqui no meu alforge”, respondeu. “Mostra-mo, por favor!”. Adão abriu o alforge e retirou dele cuidadosamente um estranho ovo cor de carne apresentando pintas por toda a casca. “Trouxe-o para ti, Eva, é a minha prenda do teu aniversário, claro que não me esqueci que hoje fazes anos…” Os olhos de Eva eram de rios, de barcos, de enchentes, de cascatas. Pegou tremulamente no ovo e confirmou, como no sonho, que as pintas eram exactamente a cópia fiel das sardas no rosto do seu filho Abel, desaparecido, que tanto tardava a voltar…

CAPÍTULO III
– LIVRES AMEMOS O TEMPO QUE AINDA NÃO COMEÇOU. (1)

Caim assistira a toda esta conversa. Bebeu todas as palavras com que o pai dera corpo à história, silencioso e parecendo alheado, mas, se o olhassem com atenção, perceberiam que tinha ficado perturbado. Pelo rubor evidente que lhe coloriu as faces, pela centelha que lhe fulgurou no olhar e pela respiração que se lhe agitou, arfando, no peito. Verificava que o seu pai Adão misturava sistematicamente factos e situações reais – a existência do ovo era um facto – no seu mundo de fantasia e aventuras, nem sempre mas por vezes, extraordinárias. Para evitar o risco de os pais perceberem a sua perturbação, Caim afastou-se discreta e calmamente, embrenhando-se nos caminhos da serra.

Reflectia.

Aquele era um tempo que decididamente chegara ao fim. Precisavam iniciar um novo ciclo nas suas vidas. Precisavam pensar mais no futuro cada um per si e, também, colectivamente enquanto família.

Os últimos dois anos e meio tinham sido condicionados pela situação do pai - a quem a doença de Alzheimer atingira - e que obrigara a família a tomar algumas decisões que alteraram profundamente a sua vida e os seus hábitos passando, inclusive, por uma mudança de residência. Tinham decidido mudar-se para uma casa relativamente isolada, nas faldas da serra da Arrábida, em virtude do carácter violento que por vezes o pai, refém da doença, assumia e porque acreditavam que uma vida mais calma, com ar mais puro e menos sujeita a agressões exteriores (ruído, fumos, trânsito, agitação, stress, …) obstaria à progressão da doença. A mãe tinha inicialmente solicitado uma baixa por apoio à família mais tarde revertida numa licença sem vencimento concedida devido à compreensão do Instituto de Biologia onde trabalhava e à intervenção empenhada do Dr. Hikyll seu director e membro da direcção do Instituto. Viviam da reforma de Adão e da herança recebida por Eva por morte do seu pai, viúvo há já alguns anos. Mas os recursos começavam a mostrar-se insuficientes e, também por aí, precisavam encontrar uma solução. A licença sem vencimento, de dois anos, aproximava-se do fim e a mãe teria de tomar uma decisão relativamente à sua vida profissional. A doença do pai, não obstante as medidas drásticas adoptadas, continuava a progredir e os períodos de permanência num mundo irreal e só dele eram quase permanentes. Ele próprio, Caim, e o seu irmão Abel tinham sido afastados dos amigos, mudado de escola e de todas as rotinas, nem todas más, que se instalam nas nossas vidas. Estavam agora a chegar ao fim daquela linha e era urgente escolherem outra e o primeiro passo a dar seria revelar o segredo que construíra com Abel mas, para isso, teria de falar primeiro com ele para saber o que pensava e como melhor proceder para lidar com o reboliço que a sua “ressurreição” iria provocar.

O SEGREDO DE CAIM E ABEL

Tudo acontecera pouco antes do desaparecimento de Abel, após mais uma das inúmeras disputas que marcavam o dia-a-dia dos dois irmãos – no caso, quem sabia identificar pelo canto um maior número de espécies de pássaros – terminada como habitualmente em gritos e empurrões. Contudo, daquela vez, houve um pormenor que agravou o tom da disputa e viria a alterar a qualidade da relação entre os dois e que foi o facto de ter terminado com a afirmação descontrolada e histérica de Caim: “Odeio-te, odeio esta vida, odeio isto tudo!” Descontrolado e com lágrimas nos olhos, Caim afastou-se a correr do local sem olhar para trás. Abel ficou a vê-lo afastar-se, confundido e estupefacto.

Abel era o mais novo dos dois irmãos. Tinha perto de dezoito anos e uma personalidade calma e introspectiva, marcada mesmo por alguma tendência para o misticismo, e gostava de pesar bem o que dizia. Era cultor de silêncios e, mesmo quando falava, gostava de se demorar com as palavras na boca como se as saboreasse. Raramente as disputas com o irmão começavam por ele.

Caim era cerca de dois anos mais velho (teria, pois, perto de vinte) e um carácter muito mais extemporâneo e belicoso. Com facilidade se incompatibilizava com o irmão explodindo numa torrencialidade verbal que sempre o procurava agredir e ferir.

Não estranhou porque não era de estranhar tal comportamento tratando-se de Caim mas, como o tempo foi passando e a tarde crescendo sem ele regressar, decidiu ir procurá-lo.

Era Outono. A tarde caminhava a passos largos ao encontro da noite. Estava-se naquele momento transitório de passagem para as sombras, quando as cores perdem o brilho e tudo se arredonda numa macieza de veludo. Aquela hora exercia sobre Abel um grande fascínio e recordava-lhe uma frase descoberta num cartaz dos escuteiros com a qual se identificara e adoptara como sua: “É ao fim do dia que o campo tem mais poesia.” Ao aproximar-se do renque de ulmeiros e freixos que tracejavam a falésia, Abel não pode deixar de se comprazer com a profusão de castanhos e dourados que os últimos raios de sol faziam refulgir nas folhas das árvores.

Caim estava sentado, encostado a uma árvore, de olhar perdido no horizonte. Ao vê-lo, Abel anunciou-se com um – Então, domesticando as feras que trazes em ti? Caim olhou para ele e, após um momento de indecisão, levantou-se de um salto e correu para ele – Abel desculpa-me por favor. As coisas, eu, estão a ultrapassar todos os limites. Estou envergonhado. Tu sabes que não te odeio. És o meu irmãozinho e adoro-te, admiro-te mesmo. Tantas vezes gostaria ser como tu, compassivo, reflectido e ponderado mas que queres, o sangue ferve-me nas veias …, já me falta paciência para a loucura do pai. Coitado, o médico falou que os momentos de loucura e irrealidade alternariam com os de pensamento articulado e lógico mas estes cada vez acontecem menos e, creio, a loucura alastra no seu cérebro como fogo em pasto seco …, Caim desatou a chorar, as lágrimas alagavam-lhe a cara. - Desculpa, preciso desabafar. O pai está doente, completamente alienado e eu já não suporto mais esta vida. Por este andar ficamos todos doidos também. Abel abraçou o irmão demoradamente e em silêncio, sentindo-lhe o peito fremente pelos soluços sufocados. Estiveram assim, silenciosamente abraçados, durante largos momentos até Abel sentir que Caim se tinha acalmado. Então, enquanto com a mão lhe afastava uma madeixa rebelde da testa, Abel falou com uma voz calma e compassada – Caim, meu irmãozinho, não te preocupes. É claro que não levei a sério aquilo que disseste e que nem por um momento duvidei da tua amizade, entre nós essas coisas nem se colocam. Percebo a frustração que te invade e agita, também eu acho que este tempo tem de acabar para que outro tempo possa nascer. No outro dia, sentado na “cadeira de pensar” da mãe, lia um livro do Agostinho da Silva, aquele pensador que tanto me fascina, deparei-me com a seguinte quadra:

“NUNCA VOLTEMOS ATRÁS / TUDO PASSOU SE PASSOU / LIVRES AMEMOS O TEMPO / QUE AINDA NÃO COMEÇOU.”

Pensei, é isto mesmo que precisamos assumir e interpretar. Entre gastar o nosso tempo a criticar e combater o que está mal e investir a nossa energia na criação de um projecto de vida que, ainda que com alguns condicionalismos que sempre serão impostos, possa constituir uma alternativa a esta, opto claramente pela segunda. Uma decisão não excluirá a outra, as duas poderão ocorrer em simultâneo, mas deveremos concentrar o essencial da nossa atenção em fazer diferente e melhor. Mesmo tendo em conta que o conceito de melhor varia de pessoa para pessoa creio ser possível estabelecer consensos alargados sobre a matéria. Tenho mesmo tomado conhecimento de algumas experiências que estão sendo desenvolvidas um pouco por todo o lado, nos cinco continentes, e que têm produzido resultados animadores. O conceito – nascido das reflexões de um grande economista britânico E.F. Schumacher - assenta no princípio da criação de ECOALDEIAS que mais não são do que grupos de pessoas que tendo entrado em ruptura com o modo de vida das sociedades “civilizadas” e modernas procuram uma outra deriva para as suas vidas. Constituem-se em pequenas comunidades que se fixam em algum lugar distante do chamado mundo civilizado e começam tudo de novo baseando-se nos princípios e no espírito da auto subsistência. Assim podem escolher os caminhos que melhor correspondam às suas expectativas e organizar-se da forma que se sintam melhor. Creio que tal desafio é susceptível de despoletar energias adormecidas, despertar vontades, irrigar sonhos e contribuir para a construção de um mundo diferente sem ganância, com mais harmonia e felicidade e onde a paz será uma realidade duradoura. Caim estava suspenso e enfeitiçado pelas palavras de Abel. Os seus olhos foram-se acendendo, iluminados por dentro, agora já não pela ira descontrolada de há pouco, antes pela combustão da ideia que se lhe construía na alma. – Esse projecto de que falas é entusiasmante e motivador. Vamos entrar nessa? Vale a pena tentar embora tenhamos de construir melhor a ideia, dar-lhe contornos mais consistentes, quando começamos? Perante o evidente entusiasmo de Caim, Abel sorriu e prosseguiu ainda calmo mas com certo empolgamento contido na voz – É exactamente sobre isso que te quero falar. Preciso, à imagem de um frade capuchinho que viveu entre 1540 e 1619 - Frei Agostinho da Cruz – que descobri no outro dia quando lia sobre a história da Arrábida e que, por motivos nunca claramente apurados, se afastou do mundo e aqui se retirou durante vários anos e até pouco antes da sua morte numa vida ascética e solitária. Não resisto a citar de cor o excerto de uma Elegia da sua autoria, precisamente sobre a Arrábida onde nos encontramos, e que colabora da minha decisão

(…)

Os olhos meus dali dependurados,
Pergunto ao mar, às plantas, aos penedos
Como, quando, por quem foram criados?
Respondem-me em segredo mil segredos,
Cujas primeiras letras vou cortando
Nos pés doutros mais verdes arvoredos.
Assim com cousas mudas conversando,
Com mais quietação delas aprendo
Que outras que há, ensinar querem falando.
Se pelejo, se grito, se contendo
Com armas, com razão, com argumentos,
Elas só com calar ficam vencendo.
Ferido de tamanhos sentimentos
Fico fora de mim, fico corrido
De ver sobre que fiz meus fundamentos.
Ali me chamo cego, ali perdido,
Ali por tantos nomes me nomeio,
Quantos por culpas tenho merecido.
Ali gemo, e suspiro, ali pranteio;
Ali geme, e suspira, ali pranteia
O monte, e vai de meus suspiros cheio.
Ali me faz pasmar, ali me enleia
Quanto colhendo estou da saüdade,
Que por toda esta terra se semeia.

(…)


Pois bem, como dizia preciso de, a exemplo dele, me isolar para ler, pensar e reflectir na empresa que se começa a construir e que agora, e por enquanto, é apenas nossa. Tens de saber guardar este segredo, prometes?! Caim revelava agora alguma surpresa e preocupação no olhar – Não sei se gostei muito do que ouvi agora, que queres dizer com isso de te ires isolar? Abel sorriu de novo e prosseguiu com um tom ainda calmo mas agora mais baixo, quase em surdina - Eu vou desaparecer durante um ano e refugiar-me na serra para, como te disse, ler, pensar e reflectir. Em suma para, como tu próprio dizias à pouco, construir melhor a ideia, dar-lhe contornos mais consistentes, avançar com a “construção do edifício”.Isso não é compatível com a vida que agora levamos, com as loucuras e gritarias do pai. Não te preocupes com mais nada, apenas terás de te calar a propósito desta minha decisão e dos contornos de que se vai revestir o meu desaparecimento. Vai provocar sofrimento principalmente à mãe já que o pai vive num mundo à parte e tu estás por dentro de tudo. Nem a ti irei ver, escusas de me procurar, preciso apenas que, todos os dias, me coloques um pão no toco oco daquela árvore, o resto é comigo, prometes?!

A conversa entre os dois irmãos prosseguiu ainda durante bastante tempo por territórios que agora não são da nossa conta nem importantes para o evoluir da história e é assim que chegamos a este ponto da aventura.

(1) De uma quadra de Agostinho da Silva.


CAPÍTULO IV
O VALE DA MANHÃ DO MUNDO

1. A doença do Pai

Como poderá a liberdade relacionar-se com ditadura e imposição de silêncio?
Só se for com uma ditadura de liberdade e ser livre de estar em silêncio.
Ora que coisa interessante, uma ditadura de liberdade e de livre silêncio.


Retirou-se, portanto. Ali sentado na beira da velha ermida, Abel ia mastigando os pensamentos, até não haverem pensamentos nenhuns. Em lugar deles um som contínuo, persistente e repetido, insinuava-se e instalava-se. Nada mais que um ponto sem dimensão no meio de uma parede branca. E se os pensamentos eram das riquezas que mais privilegiava na vida, o silêncio era de ouro e luz que a tudo trazia esplendor e a tudo dava sentido.

Daquela vez reflectia sobre a grave doença de Adão. O Alzheimer tinha decidido integrar a família e era algo que não se podia contrariar. Como tornear o problema, como conseguir conviver com o pai naquele infernal estado? Seria um problema congénito? Veio-lhe, então, à memória o avô, o Costa do Castelo. Um libertino, amante de noitadas, raparigas e vinho tinto, que vivera os últimos anos de vida numa pequena casinha, junta ao Castelo de S. Jorge. Também nele, porém, já se encontrava aquele gosto pelos retiros espirituais, fonte de renovação da vida, tal e qual a natureza elege nos momentos de solstício que são também, simultaneamente, tempos de alegre e animada folia.

Aquele seu nome pomposo, Costa do Castelo, encontrava sentido no somatório do apelido com aquele lugar onde tanto tempo viveu. De nome próprio, o nome que deu ao filho. E assim se chega à resposta da velha questão: “Quem era o pai de Adão?”. Adão da Costa. O que nos leva, por outro lado, a concluir que os devaneios delirantes de Eva fazer chocar ovos entre os seios, de tal modo a confundi-los com o filho que sonhara ter perdido, fez com que lhe atribuísse o carinhoso nome de Pinto da Costa, o filho que haveria de substituir o pesadelo em que a família se encontrava, por um futuro cheio de bons auspícios e de muitos êxitos desportivos. E, se naquela altura, a Eva carinhosamente se divertia a ver o Pinto crescer, quando passado pouco tempo se tornou frango, encontrou lugar no fundo da panela como todos os outros e arrumou-se a questão. Porque nunca nenhum pinto foi algum dia promovido a águia, naturalmente.

Mais grave era o problema do pai, pensava Abel. Mas como o que não tem remédio, remediado está, por aqui o que havia a fazer era pôr a cruz às costas e transformar a dor em solicitude carinhosa, ar de misericordioso amor, paga inevitável de passadas acções kármicas, mas nunca sem perder a esperança de que a doença do pai, embora incurável, pudesse pelo menos ser atenuada pelos medicamentos de última geração que muito por ora se usavam, e pelas renovadas energias que viriam deste seu introspectivo reencontro com a natureza das coisas. Talvez até escrevesse um livro: Compreensivamente o Alzheimer!

Mas o silêncio, estava convencido, seria o mais eficaz remédio para enfrentar a doença. O meditativo silêncio que agora encontrava naquele ermitério, constituiria a fonte primordial para que encontrasse a paz por que todos anseiam, ponto de partida para o necessário estudo de todas as coisas, do rascunhar de todas as palavras. Era isso que tinha faltado a seu pai. O árduo trabalho, a falta de descanso, a repetida monotonia da vida, os voos rasteiros pelas físicas depressões, a inexistente visão de quem olha lá mais que do alto dos penhascos, a falta de sentido de ter partido, e perdido, uma costela e, por fim, mas não por menos, as incessantes exigências de Eva e o assalto à mão armada que se dispusera a cometer somente por causa de um triste anel de brilhantes, tinham-lhe custado o clarividente viver.


2. A minha rua sabe a mar

Da minha rua vê-se o mundo inteiro.
Então, sair da minha rua para quê?
Para fazer do mundo inteiro uma rua.


Na serra da Arrábida, na parte superior do velho Convento, Abel deixava estender os seus olhos pelo mar imenso. Acalmado o corpo, pacificadas as emoções, alargavam-se os horizontes da mente. E a mente era o mundo inteiro e o mundo inteiro habitava em si. Fechados os olhos e aquecido o coração, sentia-se rodeado por uma Aura doce e leve que meigamente lhe afagava o corpo. A matéria liquefazia-se em ondas (cordas) de energia e os fluxos de energia organizavam-se e davam forma à matéria. No caldeirão dos sonhos misturavam-se diferentes elementos e o cobre prometia que um dia se transformaria em ouro. E não é que daquela vez se transformou mesmo! Não havia volta a dar, tratava-se de um mundo caminhando ao encontro das suas possíveis infinitas possibilidades, e uma brisa amena veio ao seu encontro e mostrou-lhe o rosto da Saudade.

Acto contínuo, percebeu que era esse o significado do sinal que o seu irmão transportava na testa. Não era de um castigo divino que se tratava, mas antes a redenção da natureza traduzida na sua condição de homem. Sentia que o espaço se alargava e que o tempo era muito mais do que a sua mensuração. Os limites da vida quebravam-se e os véus desvaneciam-se. Sentia-se eterno. Deus não era mais do que o seu compromisso com a vida, essência absoluta de liberdade, ou seja liberdade até de não ser livre.

Caim, conforme combinado, levava-lhe pão e água. E, daquela vez, demorou-se. Tinha saudades do irmão. A ternura transbordou-lhe quando lhe contou que decidira tornar-se lavrador. Lavrador de palavras. Jogaria as letras à terra e cultivaria árvores de poemas. Definitivamente, os seus mestres seriam as crianças, porque só através delas seriam os adultos capazes de restaurar sempre e outra vez, os sonhos que trazem cores à vida. Nesse preciso momento, íntegra realidade holística, viu que uma pomba branca com um ar instigador se aproximava de um outro casal de pombos que, enternecidamente namoravam. E eles, ainda mais enamorados que os pombos, riam muito. Quer dizer, escorriam como um rio em nascentes de água límpida.

"Viu que uma pomba branca com ar instigador se aproximava..." - Foto de Raul Costa

3. O Vale da Manhã do Mundo

Quem virá com a luz?
Se alguém vier, virá cheio de luz.
Mas será que a luz não é alguém?


Quarenta dias, dia após dia, Caim subiu a serra para levar pão e água a Abel. Naquele dia colheu duas rosas que se assomaram ao caminho e delas fez prenda para o irmão. Ele, ao vê-lo chegar com as lindas flores, agradeceu-lhe com um terno sorriso e perguntou: “Rosas em Janeiro?” Caim ficou sem saber o que responder, mas Abel logo rompeu o silêncio: “Deixa Caim, o que passou, se passou, vamos viver o que ainda não começou”, disse relembrando o Espírito Santo, um amigo comum.

Abel punha, assim, fim à reflexão interior a que se tinha imposto. Estava na hora de recomeçar. Pôs o braço por cima dos ombros do irmão e juntos se marcharam serra abaixo. Ao chegarem foi enorme o regozijo de Eva ao ver os dois irmãos juntos, sãos e salvos, mas logo retomou as necessárias tarefas domésticas e lá foi dar comida aos pintos. Quanto a Adão, ao ver os filhos, pensava que se tratavam de dois guerrilheiros da tribo inimiga que em tempos combatera a sua e, imaginariamente, imediatamente, se pôs em posição de auto-defesa, metralhadora em punho, pronto a defender-se do incapaz inimigo que lhe devassava o medroso espírito.

Agora, ali na Arrábida, as Kalash só serviam para se defenderem dos animais selvagens, sobretudo, dos crocodilos, os maus espíritos do rio, porque as pirogas eram frágeis e inseguras, e os acidentes frequentes. Quando entravam no rio toda a atenção era pouca. Houve um tempo, sim, em que a guerra estava instalada e os ferozes combates sucediam-se. Quantas vidas se perderam, quanto inusitado sofrimento, quantos deficientes e quanta orfandade, quantos pais perderam os filhos, quantos filhos perderam os pais? Tempos em que o sangue dos irmãos pintava de tristeza as rochas da serra. Esse tempo tinha passado e, agora, enfim, vivia-se em paz e podia-se gastar todo o tempo do mundo na organização das necessárias actividades de elevação e digno viver da comunidade.

Se Caim se tornara lavrador, Abel decidira-se por ser pastor. As peles, o leite e o sangue dos animais, este que se extraía através de uma das veias do pescoço do bicho e se dava a beber para retemperar energias de algum viajante mais fragilizado, eram riquezas preciosas que o grupo não dispensava. As roupas e os derivados do leite, os ovos, a companhia e o calor que os animais forneciam eram bens insubstituíveis para a vida rude da serra. Mas não matavam os animais e não usavam a sua carne na alimentação. Os animais para eles eram sagrados.

Por sua vez, Caim cultivava o sorgo nas margens do rio. Assim, a natureza proporcionasse condições favoráveis à fertilidade das terras. Porque o pior era quando ocorriam secas e as plantações do sorgo ficavam em risco. Era essa a terrível pergunta que alguém receava fazer: “Será que amanhã vai haver sorgo?”. A consequência da seca, cíclica, era a fome.

Junto ao cultivo das terras praticava-se também a apicultura e era frequente colocarem-se colmeias no cimo das árvores. O mel era outro dos alimentos muito apreciados na Arrábida. Era habitual, antes de se instalarem as colmeias, cantar-se uma canção de amor à árvore, porque caso contrário ela podia ficar zangada e a colmeia aparecer vazia. As canções ali eram muito utilizadas como práticas de protecção e benfazejo. Cantava-se ao escuro da noite para que ela os protegesse dos maus espíritos e dos animais selvagens. Acreditavam nos espíritos dos antepassados e ofereciam-lhes canções para acederem à sua protecção. Para eles os antepassados continuavam vivos e, em determinadas circunstâncias, podiam beneficiar dos seus cuidados.

"Era habitual cantar-se uma canção de amor à árvore... " A Árvore do Amor, desenho de José Batista.

O mercado, em Setúbal, era o lugar onde se podiam comprar produtos e bens alimentares que vinham de fora como o sal, o tabaco e o café. Os animais e o artesanato, entre outros, serviam de moeda de troca. Também ali se arranjava mulheres que vinham até de terras distantes para constituir família. Abel preparava-se para casar com a sua terceira mulher. Bastava ter as cabras suficientes para dar à família da futura esposa. A sua segunda mulher tinha custado 28 cabras, mas só tinha dado 14 na altura do casamento, entregando as restantes quando do nascimento da sua primeira filha. Assim, era mais seguro. A sua filha que tinha o curioso nome de “caganita de cabra”, porque tinha nascido no meio do rebanho.

O mercado ficava a uma distância de 48 horas, a pé, por caminhos difíceis e entre perigos vários. Mas, no regresso à aldeia, portadores de vinho e café, sal e tabaco, eram recebidos em festa. Então, os homens passavam os braços por cima dos ombros uns dos outros e saltavam cada vez mais alto, enquanto as mulheres os vinham buscar para dançar. Ali, no coração da Arrábida, eram elas que escolhiam. A festa sempre se estendia até bem por dentro da noite.

Nota Conclusiva: Em 1974, no Vale do Omo, na Etiópia, uma equipa de arqueólogos descobriu as ossadas de uma jovem mulher com três milhões de anos que durante muito tempo foi considerada pela ciência o nosso mais antigo antepassado comum. Essa mulher foi baptizada com o nome de “Lucy”, porque na altura em que se descobriu o esqueleto passava na rádio uma canção dos Beatles chamada “Lucy in the sky with diamonds”. Recentemente, novos estudos feitos na mesma região fizeram recuar a existência do hominídeo conhecido mais antigo para 4,4 milhões de anos. Mas o que mais impressiona ao ver as tribos que vivem hoje na Etiópia, no mesmo lugar onde viveram esses hominídeos, é o que o seu modo de vida não se alterou muito substancialmente até aos nossos dias e que, provavelmente, Adão e Eva, Abel e Caim, também andaram por ali. Provavelmente, foi ali naquele sítio da Etiópia, o berço da humanidade, que a Eva chocou entre os seios um deslumbrante Ovo Mágico.

Pergunta Final:
Somos (também) aquilo que comemos.
É sempre bom reflectirmos sobre aquilo que somos.
Então, o que é comer... bem?



CAPÍTULO V
VIAGEM A SÃO LOURENÇO

- ABELLLL……..ABELLLL, ONDE ESTÁ O TEU IRMÃO!!!!!!!!!!!!
Gritava Eva de mãos colocadas junto à boca, para melhor entoar o habitual som de comando familiar, em direcção a Caim-
- ONDE É QUE ACHAS QUE ELE ESTÁÁÁ????
- NA HORTA………………CLARO!!!!!!!
Respondeu Abel com ar de quem não revela nada, há já habitual e constante pergunta da mãe. Ao mesmo tempo pensava:
Todos os dias a mesma pergunta, eu que sou o mais novo é que tenho de andar absorvido e atento às deambulações daquele gajo. Já nem se pode pastar as cabras em silêncio.
Dois minutos volvidos, e de novo a voz de tom grave marcada pelas amarguras da vida no campo e pretensa afirmação de ordem familiar.
- ABELLLLLLLLLL…………..VAI CHAMAR O TEU IRMÃÃÃOOOOOOO, VENHAM COMER.
Abel assim fez. Levantou-se suavemente da pedra há muito domesticada e adoptada, a qual única e exclusivamente era a possuidora dos seus mais íntimos segredos. Assobiou duas vezes e as cabras deslocaram-se em sua direcção de forma ordenada, como quem obedece a ordens de aprumo militar.
Depois de colocadas na sua frente, quase como em sentido e como quem aguarda nova ordem, Abel assobiou três vezes, provocando um movimento de sentido único em direcção à cerca onde as cabras passavam as noites inteiras estáticas, apenas movendo a cabeça de um lado para o outro, como quem tenta descobrir um rumo e novas formas de passar o tempo, até ao novo pasto da manhã seguinte.
Abel por sua vez afastava-se com ar confiante e seguro da certeza do seu assobio. Apenas lhe faltara certa vez por estar engripado derivado a ter dormido em pelota com a sua segunda mulher, junto à praia da agora chamada Figueirinha .
Já a caminho no carreiro que descia em direcção à horta de Caim, abria os braços, para sentir o fresco das gotas de orvalho que se começavam a acumular nas ervas e flores que ladeavam o mesmo.
Avista pouco depois CAIM de cócoras, cotovelos nos joelhos e de palmas da mão segurando o queixo, tal como um eixo que segura um globo terrestre de forma segura para não misturar continentes e países, olhando para o local onde plantara o sorgo, que tardava em crescer, talvez por ser de origem africana e não se adaptar ao clima, ou pela seca em demasia que teimava em não ser quebrada, mesmo com as danças que os animais selvagens por ali efectuavam num acto de suplício.
- Caim, a mãe já chamou para comer
- Não tenho fome
Respondeu Caim com alguma dificuldade, no qual pela entoação, se denotava um nó na garganta que perturbava a entoação das palavras.
- O que se passa Caim!
- NÃO VÊS……..NÃO VÊS QUE O SORGO NÃO CRESCE. O que faremos, como é que vamos alimentar os animais? Como é que a mãe vai fazer pão? Como vamos passar o próximo inverno??
E sabes bem que não vamos comer os nossos animais, ou não sabes?
Abel resmunga.
- E ainda querias ser tu lavrador de palavras, e cultivar árvores de poemas. Olha nem um verso brotava daí. Nem que à noite lançasses letras amargas para de dia colheres poemas doces. Aonde é que tu fostes buscar essas ideias.
- Está calado, não digas asneiras, não vez………………não claro que não vês, tu não entendes estas coisas, tens de crescer mais um pouco.
- Porquê achas que eu sou parvo? Tenho de crescer é???
Respondia Abel transtornado
Pois olha que eu já vou casar pela terceira vez, e tu ainda nem a braguilha abriste, estás a ouvir???
Quer dizer…abrir abriste, só que foi para mijar
Caim furioso de vergonha, levantou-se num ápice e pôs-se a andar em passo rápido direito a casa, tal como as cabras em direcção à cerca..
- Caim!...espera por mim, desculpa…não te queria ofender, e além do mais sabes que estava a brincar, não tens culpa de ser feio. Sorriso baixinho de traquinice.
- Não estou chateado Abel, estou apenas preocupado, não vês que não há sorgo? Não reparas-te que nem no mercado de Setúbal havia, o que vamos fazer, diz-me!!!
Instalou-se um breve silêncio de palavras e até de pensamentos, enquanto caminhavam lado a lado cabisbaixos, onde apenas ressoavam os sons da serra em final de dia.
- Espera já sei (disse Abel)
- Então!!!
- Olha, e se fossemos às terras de Azeitão!
Agora são as festas da Nossa Senhora da Saúde! Podia-mos ir para lá amanhã, chegávamos lá no Sábado e regressávamos no Domingo.
- Mas nós nunca lá fomos, não conhecemos ninguém, nem sabemos como são aquelas gentes.
- Havemos de nos desenrascar Caim, quem sabe ainda abres a braguilha por lá, ou se descobres por lá o amor.
Sorriram em conjunto com ar matreiro, ao mesmo tempo que Caim dava um “caldo” em Abel, e prosseguiram em conversas íntimas de irmãos até a casa.

Sentados à mesa enquanto comiam uma sopa de beldroegas, refeição normal e habitué da época em que viviam, Caim como irmão mais velho, informou os pais da intenção de irem às festas de Azeitão, na procura de sorgo e outros mantimentos indispensáveis e que começavam a escassear, em troca das suas cabras e outros animais para felicidade da família e até dos machos que por lá abundavam e que outrora disputavam as fêmeas tal como é natural no reino animal
Eva primeiro colocara algumas reticências na viagem que pretendiam fazer, pois até ela e Adão, apenas uma vez fizeram tal viagem e a mesma não correra muito bem, primeiro porque para além do cansaço da viagem e de não conhecerem ninguém por essas terras, Adão apanhara uma valente bebedeira de moscatel (Torna-Viagem) o que lhes custou mais um dia de estadia e por conseguinte viram aumentadas todas as despesas inerentes, assim como a viagem de regresso durar mais dois dias que o normal.
No final do jantar e de breves trocas de impressões e opiniões, ficara decidido que no próximo dia, Abel e Caim, partiriam para as terras de Azeitão na busca do sorgo, café, sal e outros mantimentos de primeira necessidade, em troca das 10 cabras, 5 galinhas e 5 patos que levariam para tornar a viagem mais fácil, uma vez que se tratava de uma viagem experimental, a qual não valia a pena irem muito carregados e até o animal de esforço agradeceria pois também não sabiam o que lhes poderia esperar na viagem e por sua vez na breve estadia em terras de Azeitão.

“Nota - Os portugueses descobriram o Torna-Viagem há mais de um século, por acaso. Na época em que seus navios cruzavam os mares do mundo fazendo todo tipo de comércio, era comum levarem em consignação uns barris do Moscatel de Setúbal. Os comandantes recebiam pelo que vendiam. Nem sempre conseguiam comercializar todos os barris. Na volta à pátria, depois do périplo, em que se submetiam a diversos climas e significativas variações de temperatura, os tonéis eram devolvidos às caves dos produtores. Ao serem abertos, quase sempre uma grata surpresa: geralmente o vinho estava melhor do que antes de embarcar. A passagem pelos trópicos, a caminho do Brasil, África ou Índia, quando atravessava por duas vezes a linha do Equador, uma na ida, outra na volta, parecia aprimorar a qualidade do Moscatel de Setúbal e conferir-lhe grande complexidade. Nasceu assim a lenda do Torna-Viagem.”


E assim foi. Fizeram-se os preparativos para a viagem, fez-se o farnel com os mantimentos que foram possíveis, prepararam-se os animais em gaiolas de várias dimensões. Arrumou-se tudo na carroça do velho “bardoto” (resultado do cruzamento do cavalo do Casimiro e da velha jumenta da família)
Carroça carregada e andamento até às terras de Azeitão, tal qual as viagens e explorações marítimas realizadas pelos portugueses entre 1415 e 1543. Após três dias e duas noites de viagem trespassando com as botas de calcanhares gastos e solas rotas, as várias localidades da Região de Azeitão. Alto das Necessidades; Salmoura; Camarate; Pinhal de Negreiros; Aldeia da Portela; Aldeia de S.Pedro; Aldeia da Piedade; Aldeia de Pinheiros; Portinho da Arrábida; Casais da Serra; Picheleiros; Aldeia Rica; Castanhos; Oleiros; Aldeia de Irmãos; Vendas de Azeitão; Brejos de Azeitão; Vila Fresca de Azeitão (só de ler cansa agora pode imaginar o cansaço da viagem para os dois irmão). Com algumas peripécias à mistura, as quais deixo à vossa imaginação, Abel e Caim finalmente avistaram Vila Nogueira de Azeitão, mais conhecida pela freguesia de São Lourenço.
Conforme se aproximam, mais o emaranhado de cores, resultantes do amontoado das tendas dos feirantes, formam ilusões coloridas nas suas cabeças. O cruzamento das cordas provenientes das tendas e tal qual amarras que atracam barcos ao cais, provocam deambulações de pensamento e agitações de felicidade, assim como uma criança, quando avista pela 1ª vez um carrossel.
Os cheiros e odores começam a confundir as suas pituitárias, as suas energias de tanta adrenalina dispendida em tão curto espaço de tempo, começam a dar sinais de fadiga.
- Falta pouco, já falta pouco Abel
Caim olha para o irmão, que tal como ele, os olhos de Abel apresentam um ar alucinado de tanto espanto e de tão esbugalhados e vidrados que estão.
Estou exausto tal como tu, e a noite não tarda, que tal se ficarmos já por aqui, estamos a uns cem metros, assim amanhã acordamos, colocamos tudo em ordem e vamos dar uma volta a ver o que conseguimos.
-Concordo Caim…….como estamos…….. facilmente nos enganam……..e não conhecemos nada, nem ninguém, é melhor dormirmos por aqui.
Abel estava completamente derreado, as suas pernas estremecem de esgotadas, ao mesmo tempo evocam sentimentos de felicidade.


O FEIRANTE

- CAIM, CAIM, ACORDA…JÁ É MANHÃ!
Grita Abel, enquanto se espreguiça
- Já nasceu o dia??? (responde Caim)
Parece que me deitei agora.
Boceja, e esfrega os olhos, fixando-os na Feira.
Arrumam a manta sobre a qual dormiram e por onde milhares de sonhos se impregnaram através da baba salivar quer de Adão da Costa quer do pai Adão, a qual pertencia no momento e Caim e que mais tarde Abel herdaria.
Preparam os animais, passam uma vista de olhos pelos arreios do velho bordoto e prosseguem caminho em direcção ao desconhecido
- Bom, vamos, mas olha não te afastes de mim Abel, que daqui a pouco é muita gente e podemo-nos perder, para além de poder ser perigoso.
- OK
Responde Abel com a ansiedade de quem não consegue dizer não.
Começam a aproximar-se, e cada vez os sons, ruídos e pregões dos feirantes se tornam mais altos e confusos, parecendo pronunciar uma qualquer língua ainda por descobrir.
Consegue imaginar?? Claro que sim.
Já dentro do trânsito infernal da feira, olham em todas as direcções de forma abismada e semblante de espanto.
São tantas as direcções, que a bússola do pensamento indica, que seguem em frente, como um comboio avança na linha férrea.
Um amontoar de gente desperta a curiosidade a ambos.
Gritos de negação e blasfémia, cruzam-se num raio de acção que se concentra sobre um feirante.
Aproximam-se mais, Caim penetra o olhar por entre o desalinhamento de vários ombros que se encontram à sua frente.
Um homem de ar amistoso, que aparenta quarenta e poucos anos, está de pé em cima de um amontoado de caixotes. Tem como pano de fundo, a sua tenda de lona azul céu, com uma brecha que desperta a curiosidade do seu interior.
Várias vozes de diversas entoações cruzam os apupos, reclamações, difamações e alguns palavrões que pairam no ar.
Á entrada uma placa cravada num qualquer pau utilizável, apresenta escrito:
“TROCO TUDO POR AMOR AMIZADE E ABRAÇOS”
Abel ao avistar tais dizeres, diz de forma automática a Caim num ar de gozo.
- Olha pode ser que ele te dê umas ideias para encontrares o teu amor, a tua princesa por nascer.
Ri numa gargalhada que chama a atenção dos presentes para a sua direcção, enquanto Caim, não consegue esconder o seu ar envergonhado.
O feirante de braço erguido em direcção à sua boca grita pelo instrumento em forma de funil sobre comprido.
- MEUS AMIGOS…É SÓ ESCOLHER E ENTRAR. ACEITO CABRAS, GALINHAS, PATOS, PÃO, CAFÉ…..TUDO.
EM TROCA O VOSSO AMOR PODERÁ SER ENORME OU PEQUENO, PODEM DESENVOLVER AMIZADES, OU ESCOLHÊ-LAS.
E AINDA VOS DOU UM ABRAÇO.
Uma voz grita meio rouca
- CHARLATÃO…………VAI-TE EMBORA CHARLATÃO
Uma outra voz sobrepõe-se
- INTRUJA, NÃO TE VÁS EMBORA NÃO, QUE AINDA LEVAS UMA COÇA DE PORRADA.
Ao ouvir tais palavras e uma dissonância de sorrisos em paralelo, o feirante, levanta novamente o seu funil em direcção à sua boca e de forma clara começa a questionar.
- Já vi que por aqui há amor com fartura. Olho para os vossos olhos e vejo tudo menos amor meus amigos, tudo menos amor.
Uma voz interrompe.
- Mas qual amor páááá………….o que é o amor??? Vá pá diz lá, queres que a malta entre na tua tenda para nos roubares mesmo à frente dos nossos olhos e vens com essas tangas do amor? Amor, amor, daqui a pouco tu é que perdes o amor por essa fuça.
O feirante mantendo a calma de quem não quer perder o controlo da situação responde.
- Amigo então é assim:
Imagine um barco com as velas desfraldadas ao vento……..umas vezes enchem-se mais, outras enchem-se menos, e assim ele anda com mais ou menos força. Assim é o amor. Umas vezes mais forte outras menos.
Caim acena com a cabeça para o irmão como forma de aceitação, enquanto o burburinho cresce por todos os lados.
Uma outra voz questiona
- É só isso que tens para dizer pá. Olha eu a ti digo-te que o amor é cego mas não é parvo!!!!
- Uma gargalhada geral ecoa, chamando ainda mais a atenção de quem por ali passava.
- Amigos não vamos entrar por aí, não vamos entrar por aí! Quem quiser que entre, o amor é uma coisa muito pessoal (responde o feirante)
Caim não aguenta mais o desassossego que tem dentro dele e intromete-se.
- O verdadeiro amor é como a aparição dos espíritos: toda a gente fala dele, mas poucos o viram.
Abel ao ouvir estas palavras olha para o irmão de forma incrédula, ao mesmo tempo que todos olham na sua direcção.
Ainda com toda a gente a olhar na direcção de Caim o feirante afirma.
- Ora aí está alguém que pensa meus amigos, e para além disso passamos metade da vida à espera daqueles que amamos e a outra metade a deixar os que amamos.
Por isso não percamos tempo a filosofar, vamos entrando, vamos entrando. Um de cada vez.
As conversas começam a amontoar-se aos pares de forma desenfreada.
- Vês Abel (diz olhando em direcção do irmão, que já não se encontra).
ABEL…ABEL onde estás.
Caim olha em todas as direcções possíveis e imaginárias e nem sombra de Abel
e agora, onde é que aquele gajo se meteu!
bom….o melhor é não sair daqui Pensa Abel em voz alta.
O feirante dirigindo-se para Caim afirma.
- Ali está um homem com amor-próprio, que é como um balão cheio de vento, do qual saem tempestades quando o picam.
Caim acena com a cabeça como forma de aceitação.
- Amigo não quer entrar?
Vejo que há no seu coração muito espaço para amar.
Três cabras,…três cabras…. é quanto lhe peço para desvendar os mistérios do amor, essa encantadora loucura, ambição e grave tolice.
Ao ouvir tais palavras e sem sequer pensar no seu irmão por um milésimo de segundo, descarrega três cabras da carroça, entrega-as ao feirante e entra de rompante pela tenda a dentro.
- Vejam meus amigos, vejam….aqui está um homem de coração aberto para o amor.
Ao mesmo tempo, entra num impulso dentro da tenda atrás de Caim.
As muitas pessoas que se encontram junto ao feirante e num acto expectante, murmuram, discutem e trocam impressões, sem se afastarem um único centímetro do local onde se encontram. A confusão de opiniões amontoa-se.

Abel segue atrás de uma bela rapariga, por entre as ruelas delirantes da feira, até que entra numa pequena tasca com uma tabuleta
“HÁ TORTAS DE AZEITÃO
PROVE O VERDADEIRO TORNA-VIAGEM”
Ao chegar perto do balcão e sempre com os olhos postos na bela rapariga, Abel pede um torna-viagem e aguarda por um momento de inspiração ditado pelo seu coração, para se dirigir à rapariga.

Caim por sua vez e num espaço de 20 minutos, saíra de dentro da tenda, tendo ficado já sem as cabras, indo já nas galinhas, e quem sabe preparando-se para perder os patos.
A conversa instalada dentro da tenda do feirante pode ficar na imaginação de cada um de nós, ou até mesmo ser desmistificada, mas de certeza que Abel apanhara tal como seu pai uma verdadeira bebedeira de torna-viagem.

“Nota conclusiva - Uma vez que há mistérios que nos ultrapassam, finjamos ao menos ser os seus organizadores.”



CAPÍTULO VI
OVO MÁGICO

Tudo para ambos era imprevisível naquela manhã alegre de feira. Saindo descontraído, contente e pensativo da tenda que o acolheu, Caim resolve deambular pelo mercado em busca de Abel, não deixando de observar com seus dois olhos os mantimentos que se apresentavam nas bancas de comércio livre. Seu bolso era pequeno demais para a altura a que os preços estavam.
Mesmo perdendo as cabras Caim sentia-se aliviado, caminhava entre a multidão a passos lentos dialogando consigo e meditando no que se passara à momentos atrás, sem esquecer o irmão que conscientemente procurava. No seu rosto havia algo de peculiar, algo que não tinha antes de sair da tenda, os olhos brilhavam em contraste com as olheiras mal dormidas. Ainda assim pensativo estava, e era em seu mundo que agora habitava Caim, com as pernas andando por elas próprias e o cérebro a tentar acompanhar o que na verdade está andando.
No largo da igreja vira um aglomerado de pessoas em roda que lhe chamou á atenção, umas em cima das outras observam atentas o que no centro se passava, dirigiu-se á multidão com a curiosidade debaixo dos pés e rompendo o que o impedia de ver, alcançou com a vista o foco de atenção. Um homem de meia-idade manipulava uma tocha em pleno fogo na ponta, passando pelo corpo: mãos, braços, rosto, tronco, pernas, pés, era tão exata a precisão com que aquecia a pele com o calor que à medida que o povo pasmado o contemplava mais longe estava o risco do homem se queimar.
Uma música por trás dava harmonia e completava aquele que em palco a um deus se assemelhava. Caim vira que a pessoa que estava a observar era algo transcendente a si. O homem depois da dança acabara de pousar a tocha no chão, mais atrás permanecia um fogo lento já em brasa e dirigindo-se em direcção a ele concentrado no que dizia seu interior, levanta seus braços magros ao céu, fecha os olhos por um momento, dá um passo e… toda agente via diante de si um homem semi-nu com seus pés pisando brasas sem que alguma queimadura se abrisse em sua sola.
Depois de uns segundos de intenso silêncio com palmas, assobios e muitos urraasss glorificaram o aclamado artista que não parecia querer sair do sítio espezinhando ainda com força as brasas que se partiam debaixo de si próprio. Com os olhos abertos de tanta lucidez emocional, pareciam eles pérolas a olhar para a multidão perplexa, um grito longo é soltado de sua boca e no momento em que Caim se chega mais á frente para ver melhor, o homem fixa-o nos olhos como que por acaso. Suas pupilas dilataram as de Caim e em seguida os sinos da igreja começam a tocar a rebate dispersando atenção que prendia as pessoas ao indivíduo.
Agoiro certo é que, ficando hipnotizado pelo olhar do homem, ele parecia não estar na vila a que chamam Azeitão focado só no infinito que lhe estendia a passadeira vermelha.
A visão desgastada com que fitava a matéria era de tal modo grotesca que começava a ver cores que não existiam, no céu a aparição de algo inconsciente desabrochava, e um suíno surgia entre meio das nuvens. Caim não pensava nem tão pouco existia, ele era o mundo e o mundo tornara-se nele.
Suspenso no ar, o suíno voava, tinha asas de coruja, que em voo certeiro cruzavam o céu batendo ao mesmo ritmo que Caim rompia o além. Das patas traseiras, teias de aranha saíam com uma pressão suficiente para capturar um pombo que passava ao acaso por ele. O pombo apresentava uns pequenos chifres de veado, tendo em conta que a estrutura da ave e a estrutura dos chifres eram diretamente proporcionais em tamanho, que acabava por fazer realçar um perfil altamente sensual para o espaço e tempo em que se encontrava. No bico trazia uma pequeno bocado de torta de Azeitão e na pata direita bem atado um pergaminho.
O suíno agarrara de tal forma o pombo em suas teias que rapidamente o encobriam criando um pequeno casulo que detinha a pequena ave em embrião. (Imagem esta veja-se lá muito curiosa e engraçada, como se a espécie alada fosse uma cegonha que transporta pelo bico o bebé de alguém que ansiosamente espera pelo seu aclamado filho.) Avança diretamente para um rochedo plano penetrado na encosta da montanha, detém-se dele e começa a poisar muito cuidadosamente o casulo, que em seguida com seus enegrecidos dentes rasga com uma delicadeza quase suprema.
Entroncado como em cópula e já fora do casulo o pombo indefeso parecia sereno. Em seguida o suíno apodera-se do pergaminho preso á pata e declama de viva voz á pequena ave: “Ide agora e anunciai ao mundo a que te diriges com tua própria voz, não precisarás mais que te prendam mensagens ás patas, pois desde já concedo que fales para sempre, também concedo a teus pequenos chifres que se afiem por eles próprios que com tremendos bicos nas pontas te defenderás melhor dos inimigos. Em troca só preciso apenas de saber a mensagem que trazes contigo. Ide agora e terás sempre a minha benção”. A ele lhe respondeu o pomveado mensageiro das aves: “ Agradeço desde já, do fundo do meu interior teus milagres transcendentes, mesmo me tirando a mensagem assim com minha nova voz te glorifico. Que o universo te conceda teus magníficos desejos e com esse pergaminho a novos humanos darás o teu esplendor”.
Permanecia já sozinho o suíno na encosta da montanha, e sentado no musgo fresco começa lentamente a desenrolar o pergaminho:


Das uvas nasce o vinho
Dos animais o ouro
Em lona se esconde o caminho
Protegendo a pátria do mouro
(……………………………………..)

Abel já se sentia só há algum tempo. Depois da noite passada debaixo da mesma árvore onde guardaram os animais no dia em que chegaram e com a companhia da amiga que conheceu no café das tortas de Azeitão. Abel necessitava agora de outra companhia, a companhia de uma vida inteira: a do seu irmão Caim.
Havia horas que o procurava, até que por volta das onze e meia, meio-dia, Caim aparece-lhe aos olhos deitado num beco perto do largo da igreja. O sentido de irmandade de Abel alertou-o que algo se passara. Dirige-se rapidamente a ele, a passo largo, e agarrando-o com cuidado fala-lhe alto – Caim, Caim, Desperta homem de deus, não me assustes, sou eu o teu irmão Abel, Caim Acordaaaaa!!!!! Sacudindo-o para o despertar Abel sentia um grande aperto em seu estômago e um sufoco tremendo na garganta. Apoderou-se dele um sentimento de culpa depois de se ter lembrado como tão feliz tinha sido a sua noite.
- Caim, Caim, Caim, Caim, Caim!! Caim começara devagar a abrir os olhos, pareciam escuros á medida que os abria, as pestanas enrameladas davam-lhe um ar sujo e o alívio de Abel começara-se a notar, limpando-lhe com um lenço os olhos. Caim vê o seu irmão debruçado sobre ele ainda assustado e diz-lhe num ar meio desperto – Não sei porque carga de água vim aqui parar e se há coisa que não me lembro é de vir do largo da igreja até aqui. Lembro-me que de uma tenda na feira e de um homem que andava sobre brasas, o resto parece que se varreu com o vento.
Os dois irmãos abraçados um ao outro começaram a andar pela vila dentro, Abel sustentava parte do peso do seu irmão enquanto este recuperava a memória da náusea que dele se apoderara. Atravessaram a feira por outro caminho ouvindo os mesmos gritos que saíam em altos berros das bocas dos feirantes, este dia trazia mais gente á feira que o dia anterior. Abel mais lúcido que Caim quanto mais olhava para as bancas de alimentos mais ciente ficava de que tinha de arranjar mantimentos suficientes para regressarem para junto de seus pais, Eva e Adão, que permaneciam na Serra da Arrábida.
Depois atravessarem a feira chegaram à árvore onde Abel passara a noite e onde tinham deixado ainda algumas galinhas que sobravam. Deitaram-se em cima de uma serapilheira e aproveitaram para descansar, dormiram o quanto puderam e quando um acordou, acordou também o outro. Tinham fome e ás tantas Abel pergunta a Caim – Que fizeste ás nossas cabras?? A pergunta atarefara o irmão que se encontrava em posição de repouso e este respondeu-lhe – Perdi-as ou melhor vendi-as ao feirante que dava amor em troca de tudo. Abel ficará perplexo nas palavras que acabara de ouvir – Caim! Que se passou contigo, que amor foi esse que te deram para que em troca desses parte dos nossos animais?? – Foi algo de misterioso e também de um prazer nunca antes experimentado. – Mas conta homem foi na tenda do feirante não foi?
– Foi. Quando lá entrei, um misto de cheiros de incenso fez-me corar as bochechas, logo aí imaginei para que tipo de amor vinha. Uma cigana sai detrás de um biombo segurando uma bola de cristal e do outro lado do mesmo biombo sai um velho com um turbante na cabeça segurando um cesto e uma flauta, senta-se cruzando as pernas, abre o cesto e começa a tocar a flauta. A cigana dirige-se a mim seduzindo-me ao som da música, era linda ela, era tão bonita que fiquei apaixonado, ainda para mais o ambiente convidava a isso, parece que me enfeitiçara logo com o primeiro olhar. Dançou á minha roda em sedução envolvendo-me com sua bola de cristal, e depois começou a prever o meu destino dizendo: o mar que te abraça/ do castelo se avista/ um sonho te atenta/ ignora sua pista.
Quando isto acabou de dizer abraçou-me e envolveu-me em longos beijos ficamos uns minutos assim, o homem da flauta já fazia sair do cesto a sua cobra que quanto mais a cigana me envolvia mais o bicho teimava em sair ao ritmo da flauta. A seguir então envolvemo-nos e depois saí da tenda aliviado e ao mesmo tempo pensativo com aquela mensagem de previsão futura.
- Caim seu desgraçado! Foi assim com meia dúzia de palavras uma relação íntima que ficaste sem as cabras, pois eu tive também uma noite íntima e nem uma galinha perdi vamo-nos despachar, comer um dos frangos que ainda nos resta e ir pregar para outra freguesia, dê por onde der temos de arranjar mantimentos suficientes para levarmos de volta à Arrábida.



E assim foi, alimentaram-se do que tinham, pegaram nos animais e começaram a viagem. Ao passarem pela vila de Palmela encontraram um porco morto estendido á beira do caminho que na barriga estava escrito:

Aqui jaz parte do teu inconsciente Caim alguém previu o teu destino e desviou-o. Segue o mar que se avista do castelo e colherás bons ventos.

Ambos não queriam acreditar no que viam, para Caim algo lhe fazia sentido mas não conseguia explicar o que era. Abel então parecia que um raio lhe trespassara o rosto, e estupefacto diz-lhe – Alguém te quer dizer alguma coisa, nunca estiveste aqui, isto só pode ser um oráculo, o teu oráculo, algo divino te protege.
-Não percebo o que possa ser, isto o inconsciente tem muito que se lhe diga só com ajuda divina é que o seu destino se altera. Olha, a cigana também me disse para seguir o mar caminhemos então até lá, andamos mais um pouco e estamos em Setúbal, e aí veremos o que o mar nos reserva.
E assim caminharam mais um pouco. Ao chegarem a Setúbal foram dar ao porto marítimo, um local de chegada e partida dos navios que vinham e iam com mercadorias com todo o tipo de produtos. O local era frequentado essencialmente por marinheiros e pescadores. Era já de noite quando chegaram e havia uma tasca aberta virada para o cais de embarque, ao entrarem uma enorme nuvem de fumo de tabaco pairava no ar e o ambiente era ensurdecedor. Os homens atascavam-se em rum e tabaco gritando e rindo as gargalhadas pela noite dentro.
Os dois irmãos pediram uma bebida e sentaram-se numa mesa vazia em seguida um homem forte, de barba e um gorro na cabeça acercou-se deles e meteu conversa.
- Ora boa noite vocês não são daqui pois não? De onde vêm? Abel respondeu-lhe: - Viemos da Serra da Arrábida. O homem franziu o olho e pergunta-lhes – Então e o que vos trás por cá? Desta vez responde Caim -Á procura de mantimentos e animais para levarmos para a nossa casa ou então um emprego que nos possibilite a isso.
O homem deu um sorriso e falou. – A sítio certo vos conduziu o vento, estrangeiros, sou mestre daquela traineira que se encontra ao pé do pontão - Apontou pela janela e os outros dois seguiram o rasto com o olhar – Amanhã de manhã saímos para o mar em busca de peixe fresco. Levo comigo uma equipa de dez homens, normalmente levo quinze, o mar tem andado agitado ultimamente e muitos deles evitam sair, por isso tenho homens em falta se vierem comigo dar-vos-ei vinte moedas de ouro a cada um quando chegarmos.
Abel e Caim olharam um para o outro com a expressão de quem não tem nada a perder. Fizeram a viagem toda em busca de mantimentos, já que a sua horta estava a dar prejuízo, e pensando nas quarenta moedas de ouro que iam ganhar ao voltar do mar aceitaram a proposta de viva alma.
Por fim o homem disse-lhes: - Dormem esta noite no barco e amanhã partiremos já durante a aurora. Saíram os três da tasca e o mestre de traineira encaminhava-os até ao barco.

A noite conduzia-lhes o inconsciente para além mar. O sono profundo fazia com que os sonhos começassem a falar-lhes ao ouvido e a madrugada começava a ser eterna naquele cais de embarque. Lento desatracava enquanto o dia dava á luz, a chaminé deitava fumo que se dissolvia no ar e no rasto das ondas ficava a lembrança que no sonho não se pode guardar.


CAPÍTULO VII
DEPOIS DA CATÁSTROFE

Para o

(António Manuel Tapadinhas)
Que tem alma de miúdo
E gosta de fc


Alhos Vedros, 16 de Janeiro de 2011

Sabia muito bem estar aquele caminho cheio de perigos e que as dificuldades a enfrentar o colocariam a si e aos seus no limiar do risco de pura e simplesmente perderem a vida, fosse pela eventualidade de um encontro com outros iguais a ele mas, por serem mais ou terem uma força maior, quisessem ficar-lhe com a mulher ou, sem mais nada, aniquilá-los, fosse ainda pelo cruzamento fortuito com um daqueles grandes gatos que às vezes, sem aviso, quase se diria saídos do nada, atacavam e tomavam as pessoas, especialmente os mais novinhos, como o alimento providencial de um momento de fome. Só de pensar na sua filha que tanto o alegrava e a quem tanto gostava de enternecer, gritando de dor sob os cortes de garras afiadas ou o crivo de mandíbulas poderosas, só por isso sentia o corpo percorrido por arrepios que lhe deixavam estranha impressão nas entranhas e o levavam a obrigar-se a mudar de pensamentos para não ter que gritar e sobretudo para que se pudesse concentrar melhor no que importaria fazer, na atenção que teria de manter, em todos os cuidados de que tinha de se prover para que a desdita de quem se via forçado a seguir por ali se não viesse a consumar no pior dos horrores que seria o sofrimento daquela pequena criatura de quem tanto gostava ou daquela outra que ao seu coração ocupara e que o deliciava quando se apertavam nos braços um do outro. Olhando-as de soslaio para que no seu semblante nada auscultassem de todo aquele frenesim que o atormentava como jamais sentira mas, ao mesmo tempo, com a perspicácia bastante para lhes perceber nos rostos e nos corpos os efeitos mais arrasadores da fadiga e da privação de sustento, à medida que o Sol, ainda clemente do dedo a que se elevava do horizonte, deixava que se vissem as pegadas que na areia iam serpenteando para trás, observando aquela imensidão toda igual e que sabia ladeada por um chão duro e cravejado de pedraria mais ou menos pequena e aguçada, onde a incerteza de abrigo ou alimento era de todo superior a qualquer possibilidade da calma e da comida, se, por ventura, alguma dúvida em contrário tivesse acalentado, ali se teria desfeito por completo e, ao invés, ia ganhando omnipresença a certeza absoluta do quanto fora terrível a decisão de fugirem por tal rumo, na medida em que era a morte que poderia estar à espera deles, no esconso de um daqueles amontoados que o vento, quando forte, ora avolumava, ora diminuía, pelo efeito mecânico de atirar os pequenos grãos daqui para acolá, quais cabelos se soltando de uns cimos para se estatelarem adiante e que a eles já obrigara a virarem-se de costas e, acocorados, a dobrarem os troncos sobre as pernas cruzadas, sem palmo de visão para lá daquela nuvem poeirenta e picante que lhes batia nos corpos. Seria pois aquele o fim que em sorte lhes cairia?
Contudo, voltar para trás era precisamente aquilo que não seria sensato fazer. Se por onde seguiam não tinham qualquer garantia de conseguirem chegar a algum lugar onde se pudessem fixar e, de uma ou outra maneira, regressarem à vida que sempre tinham gozado, a inversão da marcha trazia a certeza de voltarem a ser encontrados por aqueles gigantes de olhos claros que lhes tinham dizimado o bando numa fúria tão intensa, como grande fora o prazer manifestado por deceparem e esquartejarem os seus parentes e companheiros de caçadas e alegrias, só pelo fito de matar por matar e de em eles arranjarem o mantimento que estaria ao alcance encontrarem em outros animais. Aquelas gentes cheias de ira e com as caras manchadas como se estivessem em fogo que, certa madrugada, lhes interromperam o sono com os gritos e a barulheira que acrescentaram à pancadaria com que esmagaram os crânios de muitos dos que dormiam e trespassaram os restantes dos que, aturdidos, se ergueram na tentativa da defesa ou escaparem, tudo num festim de violência que, então, a ele pareceu não ter fim mas, em boa verdade, não demorara o que um coelho aberto e espetado num pau requer para ficar bem assado, homens malvados que por um acaso feliz não tinham dado conta que aquele trio se escapulira na escuridão e ficara a salvo dos seus ímpetos destruidores e assassinos. Aquilo eram coisas que se diziam ao redor das fogueiras do lusco-fusco e que ele, desde a mais tenra idade, amiúde escutara às mulheres mais velhas, os grupos de cruéis que viviam de levarem o sofrimento àqueles que por fim aniquilavam e de quem se alimentavam, justamente os que, tal como eles, levavam uma vida pacífica a partir do que obtinham do meio envolvente e do que logravam caçar. Sem embargo, até àquela noite fatídica, nunca antes haviam passado exactamente do que eram, ecos que se ouviam, particularmente para os mais novitos e que ele se habituara a interpretar como uma forma de conter os mais afoitos dentro dos limites das terras que conheciam e onde estavam à mão de serem defendidos pelos mais velhos se disso fosse o caso. Certo e sabido é que ninguém seu conhecido, mesmo dos outros bandos vizinhos como aquele de onde tinha partido e em que deixara os pais e os irmãos para se juntar à mais linda cara de todas as que vira e que o decorrer dos dias veio a revelar como a mulher mais amiga e desembaraçada que alguma vez poderia encontrar e, para seu maior contentamento, lhe tinha dado aquela carinha tão sorridente que os acompanhava naquela fuga tão incerta. E afinal existiam esses homens que se compraziam em flagelar os outros homens e seria com eles que seguramente viriam a lidar se por infelicidade tivessem que retornar ao ponto de partida, pois era natural que por lá ainda permanecessem enquanto houvesse carne para fazer sofrer e mastigar em rituais que os caracterizavam como verdadeiros adoradores da morte.
De tudo aquilo dera conta a partir do esconderijo onde se acoitou, coração furioso que mais ameaçava sair-lhe pela boca, aterrorizado pela possibilidade da sua cria adorada não ser capaz de manter o silêncio que os deixava a coberto daquelas tocas entre as pedras camufladas nos tufos esverdeados da vegetação que as chuvas faziam farta e de onde tudo presenciara com as caretas de quem contem as lágrimas e a expressão do horror que nunca antes houvera sentido, de ver os algozes separando pernas e braços, abrindo barrigas e elevando as entranhas entre as mãos, simultaneamente soltando uivos de contentamento e festejo por terem as coxas para mastigarem visivelmente a gosto e os ossos dos pés para roerem ou os maiores, das pernas, para partirem e chuparem o interior. Foram as primeiras imagens daquela aurora que desde então maldizia, o acampamento chamuscado pelo festim, aqui e ali exalante de meadas de fumo que se misturavam com a neblina da primeira luz. E quando aqueles partiram e eles, sorrateiros, cheios das artes dos grandes gatos, se embrenharam pelo desconhecido da floresta, foram essas memórias arrepiantes que transportaram e os fizeram andar e andar apressados até que a noite os obrigou a protegerem-se no improviso de um abrigo entre velhas árvores caídas.
Lembrou-se dos seus irmãos, daquelas jornadas de caça em que todos os bandos se juntavam para apanharem os touros que, mal o frio lhes impunham as vestes de pele de coelho e de urso, em grandes manadas vinham para aquelas terras onde o verde se estendia até que ao longe se precipitasse no céu. Como eram felizes esses momentos em que depois se banqueteavam em ajustamentos de que se contavam as peripécias dos mais memoráveis e em que os mais velhos, por sua vez, contavam como as aves regressavam nesta e naquela aparência de certas árvores e com as coberturas do chão em que simultaneamente se sucediam umas e outras flores e explicavam o que isso queria dizer para que todos aprendessem quando era devido o cuidado com os ursos e própria a altura para os procurar e encurralar e atingir mortalmente com a força das setas afiadas. Aquelas noites em que homens e mulheres dançavam e alguns cantavam sob os ritmos dos batuques e os acompanhamentos dos fios dos arcos de caça e dos chocalhos de grãos e pedrinhas e, sempre que os que comiam caracóis se lhes juntavam o que só sucedia de umas tantas em tantas festas, com aquele sopro de vento que um deles conseguia obter a partir de uma cana furada. Fora num desses serões em que ele decidira abandoná-los para, quando uns e outros retomassem os seus territórios, acompanhar aquela rapariga que se encantava com as suas habilidades e tanto gostava de lhe coçar as costas e catar os cabelos. Agora que seria feito de todos eles? Teriam sido encontrados por aquelas feras com forma de homem e sofrido o mesmo fim doloroso que vira abater-se sobre o bando em que vivia? Riu-se só de pensar no seu pai que gostava de provocar gargalhadas nos outros e em acto contínuo se arrepiou ao imaginá-lo a ser batido até à morte pela força e o peso da pedra de um machado e interrogou-se sobre o que teria levado a sua filha a querer que eles dormissem naquele parapeito esconso e solarengo onde costumavam pernoitar quando as chuvas não caíam e que estando fora da gruta onde a maioria repousava e um pouco distante da fogueira em torno da qual os restantes se enrolavam nas peles que os cobriam o sono, lhes permitiu escapulirem-se até ao esconderijo de onde tinham testemunhado toda aquela desgraça. Só por isso tinham trazido consigo os seus pertences, sem os quais, seguramente, já teriam sucumbido na longa caminhada que os levou da floresta aos terrenos em que a vegetação e os animais foram rareando e dispersando, até que o chão foi perdendo as flores e a erva e ganhando as pedras que se multiplicaram consoante foram andando e andando até que a areia as cobriu e os passos, ainda que mais seguros por saberem que ali dificilmente seriam alcançados por aqueles de quem tinham escapado, passaram a ser mais difíceis.
Mas o que o preocupava verdadeiramente era então a imensidão daquele areal que parecia não ter fim e a certeza de saber quão difícil seria encontrar ali o que beber, sabendo que a porção de cactos que traziam se esgotaria se dali a tantas noites, tantas quantas poderiam apontar pelos dedos das suas mãos, não encontrassem qualquer linha de água que lhes permitisse reabastecer as bexigas que usavam, para se saciarem quando andavam na caça ou na demanda de algum sítio melhor para estabelecerem o acampamento. A lenha para se aquecerem sob as estrelas lá ia aparecendo a espaços, nos ramos secos de algum arbusto que o fio cortante da lâmina de pedra lhe permitia arrebatar e até mesmo a comida lhes aparecia nos ratos que uma vez por outra tinham surpreendido em toda aquela secura e que tinham conseguido apanhar à mão ou, por duas ou três ocasiões em que o tamanho do bicho o justificou, pela pontaria da seta que ele sabia usar como ninguém. A água era o grande problema e a possibilidade de não dar com ela era o que mais o inquietava naquela caminhada de que desconhecia onde os pudesse levar.
-Pai! Pai! Olha ali. Fumo! –Disse de repente a filha, apontando uma direcção para lá da corcunda de areia.
Seguiu o dedo esticado e encostou a mão esquerda à testa. Sim, aquilo era quase de certeza fumo, pois era escuro e subia no ar como se estivesse preso alhures à superfície, ao contrário daqueles turbilhões de areia por que tinham passado e que pareciam rodopiar pelo chão como se os quisessem atacar, ao mesmo tempo que lhes toldavam a vista e acastanhavam o ar à sua volta.
Suspenderam a marcha e entreolharam-se. Pai e mãe compreenderam os pensamentos um do outro e a fêmea puxou a cria para a sua ilharga.
Era uma evidência. Havendo fumo, ali, haveria gente e havendo gente, todo o cuidado seria pouco, pois não tinham como saber quem era e quem poderia dizer que não se tratasse de outra matilha de homens cruéis que por lá andassem à procura de divertimento ou tão só perdidos dos trilhos que lhes interessavam.
Hesitaram por um instante, olhos nos olhos, os pais como que se perguntaram sobre a melhor decisão a tomar, mas a nova surpresa de uma silhueta no alto fê-los colocar a menina entre eles, o macho na frente, por instinto preparando o arco e a flecha para o que viesse. Entrementes, a imagem desapareceu tão repentinamente como lhes aparecera e depois de uma rápida e muda troca de ideias entre os adultos, as passadas que retomaram tinham a rota da visão que se fora e da permanência do fumo que, tremelicando e ramificando-se de braços abertos, acabava por se dissipar num fundo de azul. Até então haviam intentado evitar os picos mais elevados, contornando-nos, no entanto sem que por isso deixassem de seguir o ponto onde o Sol subia para descerrar a manhã. Dessa vez não tinham alternativa e foi com esforço que o trio se enterrou até ao joelho à medida que prosseguiu a escalada pela corcunda arenosa. Todos eles ofegavam quando voltaram a ver mais que uma parede inclinada de areia. E já não encontrando sinais da fumarada, também não avistaram quem quer que fosse. Pairava um silêncio que os deixou circunspectos e de imediato se depararam com o que nenhum deles alguma vez vira. Lá em baixo, numa espécie de vale alongado, do areal sobressaía qualquer coisa que não sabiam identificar. Eram formas direitas que se erguiam do chão que faziam um todo com lados iguais em tamanho, com buracos alinhados mas tão certos e sempre à mesma distância entre si que, assim tivessem o mesmo aspecto, quase diriam que se assemelhavam aos pontos que, entre eles, os rapazes pintavam nas faces quando regressavam da primeira caçada. Que coisa seria aquela que parecia ter um interior, como se de uma gruta estivessem a falar e a que, ao nível do pé, uma daquelas aberturas de certeza daria acesso? Na dianteira, o pai, gesticulante, aconselhou o recato no barulho e cuidadosamente desceram a encosta, ele pronto de arco em sinal de defesa. Perceberam que era pedra quando lhe tocaram, primeiro com os dedos, tacteantes, depois com as palmas das mãos e comprovaram que embora carcomida aqui e ali, era lisa e manchada como se uma coloração qualquer se tivesse sumido. Aquilo era como um tronco que um dia encontrara praticamente todo escondido nas silvas e para onde se podia entrar por uma abertura que, apesar de ser mais pequena, não deixava de ser tal qual aquelas que ali viam quando olhavam para cima ou a que ali estava diante deles, no mesmo plano dos seus passos. Contornaram o achado e do lado oposto, olhando um tufo de arvoredo rodeando o que, pelos reflexos da luz, perceberam tratar-se de água, compreenderam a razão tanto para o fumo como para a presença humana que haviam visto. Dentro do peito de cada um, a palpitação acelerou.
Quem andaria por aqueles sítios? Seria deles aquela coisa a que se encostaram numa das suas esquinas? Seriam eles que guardariam aquela dádiva líquida em tão inóspita imensidão? E no que lhes dizia respeito enquanto fugitivos, poderia ele e a sua família abrigarem-se ali, se não com o propósito de ficar, pelo menos para descansarem antes de se atirarem novamente ao caminho? Foram essas as dúvidas que se formularam e foram essas perguntas que, em gestos e palavras veladas, como quando no alcance de uma fera, fez à mulher que estava tão espantada quanto ele.
Mas foi rápido nas avaliações. Fugir, uma vez mais, mesmo em face de uma oportunidade tão boa para beberem e se abastecerem daquela garantia de vida, fugir poderia vir a ser um acto sem préstimo algum, visto nada lhes permitir considerar que, acoitados na areia, não estivessem perseguidores preparados para os atacarem. Ainda assim, fosse lá quem fosse que por ventura os estivesse a ver naquele momento, estaria certamente em boa posição para um assalto e apesar disso nada acontecia e eles continuavam sem avistarem vivalma. Foi tudo isso que ele gesticulou, não sem antes, perante o olhar assustado da filha, lhe ter acariciado os cabelos.
À laia de lince demandaram a entrada de tão estranha coisa. Disciplinando a respiração, foi o primeiro a aventurar-se a perscrutar o interior, tronco inclinado para dentro, olhos e ouvidos atentos ao que a claridade que penetrava por todos aqueles buracos laterais desvendava em todo aquele espaço que, se por um lado apresentava uma dispersão desarrumada de objectos desconhecidos, por outro lado, permanecia na quietude e no silêncio de um local desabitado. Entrou, curioso com tudo aquilo e sobretudo com algo que lhe despertou a atenção, na parede em frente e que pela aproximação, descontada a erosão de uma imagem desmaiada, percebeu ser a representação de alguém como eles, com a diferença intrigante de parecer estar sentado sobre o dorso de um daqueles cavalos que por vezes, quando os dias eram longos, apareciam em grandes grupos junto à margem de um rio onde costumavam acampar os homens que comiam caracóis.
Saliente, no chão, a criança puxou qualquer coisa em forma de corno.
-Olha mãe. –Disse ela empunhando o achado que à mais velha fez lembrar uma daquelas folhas que formigas e lagartas conseguem transformar numa espécie de teia de aranha.
O pai olhou para trás mas não ficou mais boquiaberto do que já estava, sem saber o que dizer daquela superfície lisa que se erguia sobre estacas à mesma distância umas das outras e que pese embora a corrosão, estava estranhamente limpa do pó e da poeira que abafavam o resto.
-O que é isto? –Perguntou a mulher sem que ele tivesse o ensejo de desvendar se estaria a referir-se a tudo aquilo ou, tão só, à coisa que à frente do seu nariz deixava ver o que tinha dentro pois, ainda antes de qualquer resposta, pelo efeito de um rebuliço repentino e inesperado, viram-se cercados por um grupo de homens e mulheres que, ameaçadoramente, lhes apontavam machados em posição de ataque e setas prontas para se cravarem na carne.
Compreenderam o infortúnio e diante dos rostos mudos e decididos do inimigo, se a mãe apertou a filha nos braços, o pai, rendido, pousou o arco e a flecha no chão e enquanto se reergueu, medindo os outros, abriu as mãos nuas e levantou um pouco os braços.
Um dos sitiantes falou qualquer coisa que ele não entendeu mas facilmente percebeu que o que quer que pretendesse dizer, repetiu-se nas mesmas palavras e até na expressão com que as acompanhou. À terceira invectiva apontou explicitamente a imagem da parede e ele abanou a cabeça e disse simplesmente que não sabia. Depois encostou o indicador ao peito e esticou-o naquela outra direcção e voltou a abanar a cabeça. Girou o braço e indagou:
-Quem são vocês? –Mas a resposta foi a reafirmação da postura agressiva dos outros.
A mulher e a filha apressaram-se então a unirem-se ao pai que, por sua vez, voltou a erguer os braços.
Novamente apontando a imagem e os outros objectos, o outro homem repetiu a frase anterior e abandonando a imobilidade, dirigiu-se para aquilo que, nos intervalos do pó e da sujidade, deixava ver o interior. Provocou um movimento numa das partes e tirou de algo lá de dentro que depois depositou sobre a superfície limpa.
Algaraviou e dada a ausência de reacção por parte daqueles estranhos, acenou-lhes para que se dirigissem para as coisas que ali espalhava, simultaneamente falando aos seus companheiros que, por seu turno, baixando as armas, a ele se juntaram em redor daqueles achados.
Medrosa e hesitante, a família aproximou-se e alguém dos outros, apontando a superfície suspensa, botou um palavreado que eles não eram capazes de entender.
Por instantes todos ficaram silenciosos e esbugalhados naquelas coisas que pareciam folhas de árvore cheias de sinais alinhados e iguais em tamanho e que a nenhum deles ocorria do que se poderia tratar.
Então, o homem que lhe fizera a primeira pergunta voltou a dirigir-lhe a palavra sem que, uma vez mais, ele tivesse percebido a mais simples entre elas. Novamente se limitou a abanar a cabeça e o outro bisou, apontando os olhos e depois os objectos que lhe despertavam a atenção.
Alguns dos outros mexeram naquelas coisas, levando um pedaço do resto de uma delas a separar-se com o som de um estalido.
-Olha pai! –Disse então a menina para quem todos olharam e, na realidade sem se interromper e pousando sobre o estrado aquilo que desenterrara, acrescentou: -Olha pai, está aqui uma coisa igual a esta. –E com o indicador esquerdo apontou um dos sinais que estavam desenhados no pedacito que se soltara.
Todos se debruçaram sobre o que a criança destacava sem que algum compreendesse o que ela pretendia.
-Vês?! –Continuou ela, falando com o progenitor. Este é como este. –E apontou a forma que se repetia no objecto que havia encontrado.
Aí todos perceberam a observação e os mais velhos riram, olhos brilhando para a esperteza da mais novinha. Uma das outras mulheres afagou-lhe os cabelos.
E foi a menina que voltou a encontrar nova semelhança com um outro sinal noutra daquelas coisas tão estranhas.
-Ninguém sabe quem fez isto, estou a ver que nenhum de nós sabe quem fez isto. –E foi quando acabou de falar que lhe afloraram à memória as histórias que tanto gostava de escutar naquelas noites em que apetecia estar do lado de fora da gruta, segundo as quais, há muitíssimas luas atrás, tinham existido homens que eram capazes de voar e que sabiam fixar as palavras para além de serem capazes de falar uns com os outros a distâncias muito maiores do que aquelas que os separavam do acampamento de onde tinham sido forçados a fugir.
Era isso, só podia ser isso, aquelas coisas deviam ser restos desses homens como uma coisa que um dia vira alguém encontrar e, desde então passou a usar ao pescoço e que o homem que sabia interpretar os sonhos e curar certos males, se apressara a dizer que era coisa dos mortos, mas daqueles que um dia tinham feito uma daquelas montanhas que estoiram em fogo e que, depois de rebentar, tudo tinha destruído.
Pois via ali que essas histórias que as mulheres contavam e que, apesar de o deliciarem, sempre achara o fruto da imaginação de alguém, afinal, deviam ser verdadeiras e aqueles objectos ali estavam precisamente como provas disso.
Coçou o queixo, cheio de impotência no olhar que dirigiu aos outros que pareciam esperar qualquer coisa dele. Como contar-lhes o que estava recordando? Também eles tinham ouvido falar de tais narrativas?
Eram essas as dúvidas que o avassalavam quando passou as mãos pelo objecto em forma de corno, frio e duro e com os dedos tacteou os contornos dos sinais que ali estavam, ESPERANZA.

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