sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

LIVRO COLECTIVO II - 1º Capítulo

1º. Capítulo

O que nunca poderia imaginar era o que o esperava à saída daquele avião.
Tanto quanto a memória lhe permitia recuar, sempre ele se tivera na mais elevada conta. Desde os tempos em que a Professora Quitéria, ponteiro em punho, lhes fazia ver que a determinado som correspondia uma dada imagem e que isso se traduzia em certos símbolos que, uma vez reunidos, formavam palavras, logo aí ele percebera que nenhum daqueles outros miúdos era mais capaz que ele, fosse nesse domínio das letras, fosse na lógica dos números em que via mistérios com que gostava de brincar, nem mesmo aqueles mais felizardos que viviam sem que o frio entrasse pelas gretas das portas e janelas e no caso daquela miúda que muito o irritava pelos modos e juízos que punha em tudo, ou do Arturinho cujo pai era rico e culto, iam ao ponto de terem livros e televisão em casa e qualquer coisa que necessitassem, como que por encanto, geralmente aparecia no dia seguinte. Ora ele não precisava daquelas máquinas de calcular de bolso que os colegas invejavam, para efectuar por cálculo mental as contas mais difíceis e para descobrir a demora de um tanque em encher, sabendo as respectivas medidas e o volume líquido que da torneira jorrava por cada segundo. Como em certa ocasião disse a um conhecido, “-Posso ficar sem trabalho, mas cada vez tenho mais consideração por mim.”
Mas este desabafo teve lugar muitos anos depois daqueles bancos da escola em que se sentava de calções quando as tardes aqueciam e calças compridas com as joelheiras que detestava, no Inverno. Era então um moço que por empurrão paterno e em face de resultados escolares banais e que, na perspectiva de um futuro ganha-pão, nada auguravam de relevante e até porque, preguiçoso como se mostrava, não havia quem dele pudesse esperar um empenho que por essa viesse a alterar o destino antevisto, lá tinha ele aceite a condição de aprendiz junto de um electricista que vivia de empreitadas para a construção civil. Cedo se fartou de ser burro de carga para tudo e de passar os dias a obedecer a mandos e recados deste e daquele, quando na verdade no que ele se via era muito simplesmente a desenhar as redes e a explicar aos outros como deveriam abrir os roços onde depois colocariam aqueles tubos anelados em que haveriam de passar os fios da instalação. E numa boa tarde em que a aselhice do encarregado geral o obrigou a subir em vão a escadaria de andaime de um quarto andar em tosco, por se recusar a pedir desculpa ao mais velho a quem chamara estúpido, não hesitou em virar as costas ao patrão perante as alternativas que este lhe colocava.
Que outra atitude poderia ele ter tomado? Foi a pergunta que devolveu à mãe quando esta o inquiriu sobre o sucedido. Ser filho de trolha alcoviteiro e crescer a peixe frito e sem doces nem a distinção de gravata bem camisada, ver os da sua idade saírem para ir aqui e ali, com dinheiro no bolso, planos na cabeça e sorrisos nos lábios, ou ser o último recurso dos bailaricos para as miúdas que iam vendo os desejados rumarem a outros rostos, tudo isso eram as fatalidades com que tivera que lidar, ainda mais ele que não sendo bonito, nada tinha que o distinguisse entre aqueles com quem convivia. Contudo, não era por aí que resolvia as dúvidas quanto à sua culpa por ter nascido de pais assim e como à medida que o buço lhe foi despontando ele se foi isentando de uma tal responsabilidade, nenhuma das refregas com que a vida lhe atirou a gaiatice à cara foi capaz de o demover da sua auto-estima que, na adolescência e à mistura com certo sentimento de vitimização, evoluiu para um profundo sentido de consciência das injustiças que aos mais pobres impediam os degraus de acesso a dias melhores. E foi isso que, de emprego em emprego, o levou a concluir os estudos do ensino secundário. Chegaria a hora em que todas aquelas que insistentemente não riam das suas chalaças e raramente o deixavam sem estar a falar só, todos os que nele viam nada mais que um Zé Ninguém, todos haveriam de ser confrontados um dia com a obrigação de lhe tirarem o chapéu.
Só que essa oportunidade jamais aconteceu. Em contrapartida, dessas noites em que após os afazeres que se foram seguindo uns aos outros ao sabor do tédio e do cansaço com os mesmos, amiúde mais sonolento que dado à vontade de ouvir, ele se sentava naquelas cadeiras ridículas para aprender as lengalengas das várias disciplinas, de todo esse esforço ficou-lhe o gosto pela História e a Arqueologia que o haveria de acompanhar para o resto da vida. E como se isso não tivesse vindo a ser de especial importância no seu percurso, também aí, finalmente, ele encontrou o amor.
Cacilda era grande e, sob aquelas blusas e camisolas invariavelmente largas e combinadas com saias até aos tornozelos, toda ela chocalhava com as suas graças, ou então só não se derretia, porque a atenção que dispensava às suas palavras implicava que ali estivesse, em corpo, com os olhos brilhando na exacta direcção dos seus. Fora a primeira moça que aceitara conversar com ele sem outro intuito que o mero dar à língua, da mesma forma que fora dela o primeiro sim para uma companhia de cinema e quando numa manhã de beira-mar lhe disse que aqueles braços feitos remos de cabeça à tona de água eram um nadar muito bem, sequer sem o mais leve remoque interior, ele ficou a saber que a amava. Cabendo no balandrau carnudo do seu amplexo, quase se empoleirava para a abraçar e lhe acariciar as costas até à coluna, mas não foi isso que os demoveu e depois de ela o ter mexido e remexido e dele ter feito um homem, foi com toda a naturalidade que decidiram casar.
Por essa altura já ia no terceiro ano consecutivo em que ganhava os verões pela animação de campos arqueológicos de tempos livres em que, de acordo com os relatos em que se impunha à tutela, fazia importantíssimas descobertas de cacos e outras provas de actividades económicas de antanho e extintas e completava os invernos com avenças várias que lhe possibilitavam a compilação daqueles dados e a produção de artigos para a imprensa local nos quais apresentava e defendia teorias e mais teorias sobre a pretérita importância económica do burgo. Foi o patamar das convicções que cirurgicamente deixava cair nos ouvidos certos e na sequência de uma notícia em que o jornal da terra lhe acrescentou ao nome o título de arqueólogo, nada fez para que a incerteza deixasse de dar a entender que a nomeação muito naturalmente decorria de uma formação académica que, de facto, não possuía, mas foi por via disso veio a subir à posição de técnico camarário responsável pelos assuntos culturais.
Era o bom porto após uma acumulação de expedientes que afinal tanto o inquietavam e o faziam protestar quando certas vozes se erguiam e a concordar sem demora, impreterivelmente segundo a regra da razão que a todos os mandantes e influentes assiste. Provavelmente por causa dos alívios e da confiança acrescida perante o vindouro, gozou a satisfação de saber que a Cacilda estava grávida e mais tarde gostou sinceramente de se ver como pai. Foram pois dias de Sol, a criança medrava sob os cuidados e carinhos da mãe, o salário engrossara significativamente e com a queda do muro de Berlim descobriu-se democrata e gabou publicamente a sua própria coragem para trocar o seu quadrante político de sempre pouco antes da alteração eleitoral que aos seus representes arredou do poder autárquico.
“-Pois é, até posso não ter grandes amigos, mas nunca na minha vida perdi uma oportunidade.” –Respondeu a um antigo correligionário que, numa converseta de café, lhe pôs os dedos no nariz.
Terá sido esse o sentido com que se fez nomear para o cargo de uma associação de amizade com uma cidade belga que estabelecera um pacto de geminação com a Vila onde nascera e obviamente a chefiar a delegação que, a convite, ali se dirigiu para assinar o acordo.
Só por isso subiu para o avião que o levaria ao encontro daquilo que nem a sua prodigiosa imaginação seria capaz de antever.

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